“A Janela”: resgate do ocaso
Em filme sobre velho escritor que espera a visita do filho, diretor argentino Carlos Sorin recupera imagem soterrada pelo inconsciente para dotar o personagem da possibilidade de reencontrar-se com algo que ficou inconcluso em sua vida
Publicado 29/05/2009 18:21
Existe algo de inquietante no ocaso das pessoas. Além de perder a liberdade de ação, voltando a depender de outras para simples atos, podem ser assoladas por lembranças soterradas por décadas de esquecimento. E, de repente, essas recordações começam a lhe ditar o comportamento, como se fossem necessárias para mantê-las vivas. Em “A Janela”, do argentino Carlos Sorin, o escritor Antonio (Antonio Larreta) passa os dias preso à cama devido a problemas cardíacos. Em raros momentos lhe é permitido ver para além da janela, onde a vida prossegue na vastidão da Patagônia. Então, a memória lhe dita as sensações, contorna a vivência limitada e as tentativas de superação dos obstáculos que a velhice lhe impõe. Às vezes as amarras do subconsciente se soltam e emergem imagens soterradas por décadas de esquecimento. São elas que irão ditar os instantes em que aguarda a chegada do filho Pablo (Jorge Diéz), depois de anos de distanciamento – e então, enquanto o aguarda se deixe tomar por rompantes dignos de um garoto cheio de vida.
Mas em “A Janela” não é visita do filho pianista propriamente que mantém o velho escritor inquieto. Entre os dois há apenas laços de sangue; Pablo vive na Europa e não mais se vêem, por aquelas diferenças que muitas vezes distanciam pessoas de temperamento forte, ainda mais quando são pai e filho. Sua anunciada chegada traz corre-corre à criadagem da fazenda, porém não o suficiente para fazê-lo prender-se ao que poderia ser chamado de reconciliação. Antonio se permite, no máximo, algumas idiossincrasias, como a de estar bem vestido quando, enfim, Pablo adentrar a seu quarto e selarem o retorno com um bom copo de vinho. Pouco lhe importa as razões do distanciamento, não lhe ocupam a memória e tampouco o liga à falecida companheira. No mundo em que vive sobra pouco ou nenhum espaço para emoções desta natureza. Busca satisfação nas conversas com seu médico e nas raras vezes que pode olhar o mundo lá fora, por uma janela que raramente é aberta.
Inquietações dominam cotidiano do personagem
Há, assim, absoluto controle sobre suas ações, restritas à cama e a observações sobre sua saúde. Desta forma, são as inquietações que dominam seu cotidiano – algumas rompem suas reflexões, como a abelha presa no vidro da janela, a necessidade de manter o costume da sobremesa que não pode mais saborear ou as negociações conduzidas pelo caseiro Alberto (Arturo Goetz) às voltas com os negócios da fazenda. Ou mesmo tentar reconstruir o piano, matriz de um tempo em que podia deliciar-se com seus acordes. Nada, porém, inquieta-o tanto quanto a sensação de que algo ficou inconcluso em sua adolescência; espécie de imagem-matriz do que poderia ter sido sua vida, caso lhe desse prosseguimento. Nisto se constitui seu leitmotiv, buscar sentido para uma imagem que explodiu numa manhã e se nada representou nos primeiros instantes; inquieta-o o suficiente para tentar lhe dar sentido. Pequeno fato que permite a Sorin jogar com o subconsciente e seu papel na construção do desejo, no anseio de reconquistar algo ao qual não se deu a devida importância, mas que, no entanto, o marcou pela vida inteira.
Poderia ser um fato banal, desses que se cita e se encaminha a narrativa para outros rumos, dando-lhe sentido claro para o espectador. Ele é, entretanto, o esteio que mantém “A Janela”, sem se tornar opressivo, pois traz alegria, prazer ao velho de 80 anos, obrigado a tomar remédios e estar sujeito a recaídas. Porém, o alimenta a ir em frente, desvendar os estragos da tempestade na pastagem, apreciar o toque do vento e atrever-se a caminhar pelo campo, tão aberto quanto sua vida poderia ter sido. Neste instante, o espectador pode indagar se não há nele mesmo alguma “janela” a ser aberta, alguma imagem submersa que gostaria de trazer à tona. Talvez, ela pudesse mudar sua vida ou indicar o que ela deveria ter sido. Sorin não faz projeção alguma sobre o que teria sido a vida de Antonio, deixa-a a ele, espectador, a tarefa de ver para além das inquietações visíveis do velho escritor, amigo dos labirintos de Borges, de quem ganhou um livro autografado.
Antonio não é apegado às coisas materiais
E percebe-se que ele, Antônio, não é apegado ao passado, às coisas materiais, apenas convive com elas e delas se livra quando necessário. Até mesmo a citada lembrança traz-lhe prazer, sem o incomodar a ponto de buscar origens e conseqüências – quando muito uma citação e sorriso que sela um tempo que ficou para trás. Esse desapego torna “A Janela” mais racional, sem tom melodramático, do ocaso de alguém que poderia ter buscado o significado maior da imagem, brotada do subconsciente num momento que suas ações estão restritas à cama. Sorin a cita, usa-a como fato emblemático da vida de Antonio, centrando a narrativa nos preparativos para a chegada do filho. Cria, inclusive, o temor de um choque entre ambos. Não pela condução que ele, o diretor, dá ao filme, mas pelos clichês dos dramas desta natureza, coisa que, evidentemente, Sorin não o faz. Deles escapa ao mostrar Antonio interessado em estar bem, quando Pablo chegar e se entretêm com a bela lembrança que o alegrou num momento em que poderia ser tragado pela depressão.
Sórin não se prende à sua derrocada, enche sua vida de sinais de que a existência humana continua. Aquele é tão só um instante de alguém que viveu o suficiente e, por isto, tem seus momentos de inquietação. A velhice para ele, Sorin, não é simplesmente o sopro final, cheio de sofrimento e perda – é o átimo em que uma imagem trazida das profundezas do subconsciente gera prazer, o desejo retorna e o resgata para a vida. Num pequeno filme, de apenas 85 minutos, o diretor argentino comove o espectador e o leva a valorizar as pequenas ações, a despir-se dos adornos da modernidade, sem tratá-los como inúteis, o provam os jovens em passeio de bicicleta pelo campo e a jovem companheira de Pablo, a bela Claúdia (Carla Peterson), às voltas com a perda do sinal de celular. Para esta, no entanto, o trabalho importa mais que as emoções da viagem; logo verá que naquele ermo ele de nada vale, mostra-o o próprio Pablo em suas andanças pela casa. São, então, as mínimas inquietações que irão desembocar num enunciado.
Imagem recuperada traz prazer para velho escritor
Sim, um enunciado, para não dizer revelação, que Sorin se dá no direito de brindar o espectador. Um daqueles instantes mágicos do cinema, ditados pela condução da narrativa que chega ao ponto máximo da criatividade. E aquilo que parecia secundário, surgido a intervalos, termina por ser o principal, não as consequências da visita de Pablo propriamente. Traz o filme de volta à memória, ao lúdico, à psicanálise, ao “eu” não vivido em sua totalidade ou talvez jamais vivido. Fato comum na vida das pessoas, senão do próprio ser humano, para generalizar. Tal como nas novelas de Borges os labirintos se revelam à medida que a imagem que traz prazer para Antonio é a mesma que o faz se reconciliar com o desejo não realizado em sua adolescência. E o espectador, enfim, deixa para trás a ideia de que estava diante de um filme sobre o ocaso da vida, se preferir, a terceira idade, num politicamente correto enviesado, porém a velhice proporciona retomadas que a tornam menos sofrida.
Com toda a gravidade da doença de Antonio, de suas recaídas, dos cuidados da enfermeira Emilse e da administradora Maria Del Carmém (Maria Del Carmém Jimenzez) e das admoestações do próprio velho, Sorin não o trata como alguém prestes a encerrar seu ciclo. Isso é o que menos interessa em “A Janela”. São meros entrechos de uma abordagem que privilegia a memória como conduto de uma existência que poderia ter sido plena e não o foi. Quando, ele, Sorin, o faz retomar a vivência no momento mesmo em que ela se rompeu, Antonio se reencontra e o espectador não o vê mais como moribundo, só alguém que recuperou através do presente o que o subconsciente soterrou durante toda sua existência. Um belo filme, desses que promete menos do que nos dá, até mesmo diante da possibilidade de ficarmos indiferentes ao que viria acontecer ao personagem, cuja situação sabemos de antemão não enseja bons presságios. Mas é justamente isto que torna “A Janela” um belo filme.
“A Janela” (La Ventana”. Drama. Argentina/Espanha. 2008. Roteiro: Carlos Sorin/Pedro Mairal. Direção: Carlos Sorin. Elenco: Antonio Larreta, Jorge Diéz, Carla Peterson, Maria Del Carmém Jimenez, Emilse Roldán, Arturo Goetz.
Tem a ver
Muitos filmes merecem ser vistos pelo tema e pela abordagem que seus diretores, muitas vezes desconhecidos, lhes dão. A coluna, que às sextas-feiras, veicula análise de um filme em cartaz, fará breves comentários de um ou mais deles, para que o leitor possa assisti-los em reprises, mostra dos melhores do ano ou em DVD. É uma forma de não deixá-los à margem da discussão como os dois que comentamos abaixo, que mostram o acerto de contas entre pais e filhos ou os problemas da terceira idade, sob uma ótica adversa à da obra analisada nesta semana.
“Sonata de Outono” (Höstsonaten). Drama. Suécia/Alemanha. 1977. 93 minutos. Direção/Roteiro: Ingmar Bergman. Elenco: Ingrid Bergman, Liv Ullmann, Lena Nyman, Erland Josephson, Gunnar Björnstrand.
Em filme sobre os males que a mãe pode fazer às filhas e vice-versa, Bergman mostra o quanto a dedicação de Charlotte (Ingrid Bergman) à carreira de pianista e a entrega a si mesma prejudicou Helena (Lena Nyman), deficiente, e tem de submeter-se às cobranças de Eva (Liv Ullmann). Não há porque escapar às suas responsabilidades e às conseqüências trazidas pelo seu comportamento. E desmente as desculpas de que fizera aquilo pelo bem delas. Egoísmo, egocentrismo, irresponsabilidade, dor e rancor pontuam este que é um dos mais amargos filmes do mestre sueco. Para ver e refletir sobre se o trabalho é mais importante do que a família ou se é possível conciliar a ambos sem provocar dor e ressentimento nos filho, nesta época em que a emancipação da mulher é uma de suas conquistas mais importantes.
“Longe Dela” (“Away from her”). Drama. Canadá. 2007. 110 minutos. Roteiro: Sarah Poley, baseado no conto de Alice Munro, “O Urso Vem do Alto da Montanha”(“The Bear Came Over the Mountain”). Direção: Sarah Poley. Elenco: Julie Christie, Gordon Pinset, Olímpia Dukakis, Michael Murphy.
Não dá para esquecer a derrocada de Fiona (Julie Christie) neste filme. A bela Lara, de “Doutor Jivago”, faz a mulher que, ao chegar à terceira idade, começa a sentir o peso dos anos e a chegada do alzheimer. Solidariedade, fuga, busca de alternativas, marcam sua vida, até que não podendo mais suportar suas dores, seu companheiro Grant (Gordon Pinset ) a leva para uma clínica, onde a derrocada prossegue. A jovem atriz canadense, Sarah Poley, em sua estréia como diretora conduz o filme num registro em tom baixo, sem desandar para o melodrama ou a exploração barata do problema da terceira idade, em si. Dá para derramar algumas lágrimas e ver o caminho que algumas pessoas, às vezes, têm de percorrer.