A mídia e o ''caso Renan'': o exemplo do menino rico

O principal fato positivo da derrota sofrida pela direita no Senado, quando o golpe contra o mandato do senador Renan Calheiros (PMDB-AL) foi parcialmente abortado, é que a “grande imprensa” pode, enfim, ser vista como ela realmente é. Como as realidad

Todos sabemos que o menino rico dono da bola é um mau pretendente a arquétipo ou a figura social. Ele decide quem faz as equipes e escolhe os melhores jogadores, quem faz as regras e até se o gol vale ou não. Se não for como o dono da bola determina, simplesmente o jogo nem se inicia. Quando seu time começa a perder, o menino rico grita: ''Pára o jogo que a bola é minha”. Ou então ele pega a bola com a mão, bota embaixo do braço e expulsa um ou outro jogador do time adversário.


 


Nenhuma outra imagem define melhor como a “grande imprensa” está se comportando diante da primeira derrota da direita no “caso Renan Calheiros”. O problema é que o Brasil não é mais território comandado exclusivamente por este menino mal-criado. Daí o seu recurso à chantagem e às ameaças. Ele esperneia, agride os adversários com palavrões, ameaça acabar com as regras à força, lança vaticínios funéreos e chora um choro falso em voz alta. Convenhamos, deve ser horrível ser de direita e não saber conviver com a democracia.


 


Mar de lágrimas de crocodilo


 


O lado positivo disso tudo é que o mar de lágrimas de crocodilo que tomou conta da mídia põe à disposição dos brasileiros um exercício simples e rápido para se ter uma boa idéia do tamanho da confusão em que a direita brasileira está metida. Não requer prática nem habilidade, e nenhum tipo de esforço mental mais puxado. À falta de mais mitos para justificar o fiasco da empulhação, próceres do conservadorismo já apontam suas armas em outra direção. Eles negam, evidentemente, mas o que está em jogo é a sucessão presidencial de 2010.


 


Basta tomar nota de algumas recentes trovoadas de palanque para ver a tática direitista com nitidez. ''O que se faz hoje com outra roupagem é apenas a reprodução, com tintura de esquerda, do que era feito pelos coronéis, que davam dinheiro em troca de nada e, às vezes, em troca de voto'', disse recentemente o presidente nacional do PSDB, senador Tasso Jereissati (CE), sobre a política social do governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva. ''Precisamos encampar a batalha pelo desloteamento na área (a da saúde), principalmente na Funasa'', trovejou o governador paulista, o tucano José Serra.


 


Pelotão mais raivoso da mídia


 


Outros tucanos de menor expressão também foram encarregados de propagar bobagens do mesmo tipo com o único intuito de abastecer as pautas da “grande imprensa” com “notícias” contrárias ao governo. Mas o cuidado principal, no momento, deve ser com o poderio de envenenamento dos setores médios da sociedade pelo pelotão mais raivoso da mídia. “A nação recebeu estarrecida a decisão do Senado Federal ao absolver o seu presidente depois da opinião pública e do Conselho de Ética terem optado pela condenação”, escreveu Antônio Ermírio de Moraes, o mega-empresário e tucano de quatro costados, em sua coluna no jornal Folha de S. Paulo no dia 16 de setembro passado.


 


No mesmo jornal, e no mesmo dia, a socialite-barraqueira Danuza Leão disse: “Num país do tamanho do Brasil, com tão pouca gente politizada, quantos entenderam o que houve quarta-feira no Senado?” É um exemplo acabado de como pensa a elite brasileira. Em sua visão, o povo — e, a rigor, até a parte baixa da “classe média''—, onde está a maioria dos eleitores de Lula, e os que votaram contra a direita no “caso Renan” são gentalha, gentalha, gentalha… Gentalha ''despolitizada''. Argh! A barraqueira foi mais longe. “Para preservar a população, uma sugestão: que a senadora Ideli Salvati só possa sair de casa de focinheira, porque ela e um pitbull são iguais. Até fisicamente”, escreveu. Bem, quando a coisa fica desse jeito, o melhor é mudar de assunto.


 


A tribo dos verdadeiros brasileiros


 


Tudo o que “a grande imprensa” faz, segundo ela própria, cai em duas — e só duas — categorias. Na primeira, o que ela diz, em qualquer área de atividade, é sempre a verdade eterna e absoluta. Na segunda, seus feitos são sempre os melhores ou maiores. Se surgir alguma divergência entre ela e o mundo, não resta dúvida — o mundo está errado. E o pior é que a “grande imprensa” não tem o menor pudor em dizer que fala em nome da “sociedade”. A “sociedade” quer isso, a “sociedade” quer aquilo… A “sociedade” pensa assim, a “sociedade” pensa assado… Nós pagamos impostos, nós elegemos este ou aquele… É uma esquizofrenia sem limites — uma verdadeira palhaçada.


 


Este comportamento lembra também outro personagem — o Zorro (ou Cavaleiro Solitário). Ele cavalgava pela pradaria sem fim junto com seu fiel companheiro, o índio Tonto, quando de repente avistaram uma fileira de comanches. “Oh, não, Tonto, comanches ao norte, vamos desviar para oeste.” E assim fizeram. Cavalgaram mais um pouco, e nova fileira de comanches. “Oh, não, Tonto, comanches a oeste, vamos desviar para o sul.” Logo em seguida, nova fileira de comaches. Desviaram-se para leste e… outra fileira de comanches. Diante do inevitável, Zorro comenta: “Oh, não, Tonto, nós estamos cercados!” Tonto, prontamente, responde: “Nós quem, cara-pálida?” Ou seja: nós, verdadeiros brasileiros, somos de outra tribo.


 


Baboseiras que eles produzem


 


Basta pensar um pouco, não mais que 5 minutos, para constatar que assim fica difícil falar em democracia. Como pode funcionar democraticamente um país onde o exercício da “liberdade de imprensa” reproduz impunemente opiniões deste tipo? Não existe, em nenhuma nação democrática do mundo, nada que se possa comparar. Onde existe algo de parecido, não há democracia de verdade; onde há democracia de verdade, as coisas não são como no Brasil. A tragédia não fica apenas na constatação de que a quantidade de embusteiros supera qualquer limite mais ou menos razoável.


 


A esperteza desses sujeitos funciona com muita eficácia. Sua arma é dizer que ninguém que pratica abusos pode receber nenhum tipo de punição — por mais evidente que seja seu delito. No entender dessa gente, só se pode dizer que algum deles tem culpa, culpa mesmo, no dia do julgamento universal, quando o Senhor, finalmente, virá acertar as nossas contas. Até lá, sugere-se que o público tenha paciência e continue a sorver cotidianamente as baboseiras que eles produzem.


 


Realidade contraditória de hoje


 


Não se trata, aparentemente, de algo que se possa resolver com o tempo. Na teoria, a atuação constante e paciente da democracia — com eleições, separação dos poderes e exercício da cidadania — vai, pouco a pouco, limpando a vida política, desenvolvendo um verdadeiro espírito público e separando o joio do trigo. Na “grande imprensa” brasileira, essa teoria funciona ao contrário. Com o passar do tempo, as coisas pioram, em vez de melhorar. O joio vai sendo separado, sim, do trigo — só que o “mundo da informação” fica cada vez com mais joio. O que explica isso?


 


A resposta é o limite para o exercício da democracia de massas numa sociedade fendida em dois extremos como a nossa. No Brasil, imprensa e poder econômico formam uma simbiose histórica. Do lado de cá, onde está o povo, liberdade de expressão é algo inexistente. Se há uma coisa com a qual se pode contar com 100% de certeza no Brasil de hoje é a capacidade da “grande imprensa” de colocar em circulação, cada vez mais e com intervalos cada vez menores, alguma idéia realmente muito perversa. É uma ofensiva sem precedentes para ganhar um grau inédito de controle sobre o fluxo da informação no país.


 


Já se passaram mais de 20 anos desde o último presidente militar, e quase 30 desde que o AI-5 — em cima do qual se sustentava a ditadura — foi revogado. É tempo mais que de sobra para aprender como funciona uma democracia. Mas o que se conseguiu de concreto nesses anos todos foi a realidade contraditória que existe hoje. De um lado, um governo apoiado pelas forças progressistas; de outro, um condomínio de forças da direita decaída que luta para golpear o progresso social e a democracia.


 


Meios para o julgamento público


 


Os grupos que controlam com poderes ditatoriais a liberdade de expressão no Brasil pretendem controlar, ao mesmo tempo, o trabalho dos jornalistas, os meios audiovisuais de comunicação, a produção cultural, as informações prestadas por funcionários federais, os sigilos bancário e fiscal dos cidadãos e as ações do Ministério Público. A conclusão é inescapável: os grupos que controlam a “grande imprensa” brasileira fogem da democracia como o Diabo da água benta.


 


O que está realmente em jogo nisso tudo é uma diferença essencial no entendimento do que seja liberdade de expressão. Quem se opõe a esses grupos acredita em algo muito simples: os meios de comunicação que publicam informações erradas, cometem injustiças, causam danos ao público e aos indivíduos, atentam contra a lógica e ofendem o país — e até o vernáculo — não deveriam contar com a impunidade para cometer abusos indefinidamente.


 


A terapia para isso não está na criação de tribunais de disciplina. Para delitos praticados por jornalistas há o Código Penal. E para os prejuízos que causam há as indenizações aplicadas pela Justiça, com freqüência e valores maiores do que em geral se imagina — apesar de isso não ser nada para o poderio econômico dos grupos que controlam a “grande imprensa”. O que falta é meios reais para o julgamento público de seus atos. Só com esses meios o país terá uma imprensa com o grau de qualidade que corresponda a seu grau de exigência — da mesma forma que os países verdadeiramente democráticos têm os governos que escolhem e merecem.


 


Espasmo que deu em nada


 


Esse grau de democracia, no entanto, só será possível quando for limitada a progressão cada vez mais veloz e mais agressiva do desrespeito à liberdade de expressão como prática regular para defender interesses elitistas e reacionários. A desconstrução dessa desordem na vida diária do país só será possível pela via política. Infelizmente, alguns setores das forças progressistas parecem esquecer que o governo do presidente Lula foi eleito por uma extraordinária maioria de votos e que, portanto, tem toda a força de um mandato popular claríssimo.


 


A coragem e a clareza que o governo mostrou ao fixar as linhas básicas de sua conduta, e que produziram resultados notáveis na área social, só será possível na área política com a entrada em cena de fato das forças progressistas. Com três anos e pouco pela frente, o governo Lula tem tudo para fazer com que as ameaças de hoje se transformem, mais adiante, apenas na lembrança de um espasmo que deu em nada. Será preciso, para isso, que o presidente confie de verdade no mandato que recebeu e que conte com a ação efetiva da sua base social.


 


 


 

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