A moça cor de gelo

A cadeira não tinha nenhum fio de ouro, já não servia para sentar, mas suportava o peso das lembranças.

A cadeira estava quebrada, o tempo, o movimento e o amor fraturaram suas pernas. Apenas um espelho quebrado se ancorava no seu encosto. Um vestido preto, com ilhoses prateados se encolhia no canto da cadeira. Ali parecia que tinha uma poesia de olhos arregalados, vigilantes, atenciosos e escancaradamente sorridentes.  

Era apenas uma cadeira velha, que resistia há algumas primaveras. A cachorra branca dormiu algumas noites.  A moça cor de gelo desenhou seus sonhos mais quentes e tentou aquietar seus pesadelos. Sentada, passava horas contornando a silhueta dos seus lábios para não esquecer dos seus vulcões. Lia na cadeira velha Manoel de Barros para acreditar em verdades e escutava músicas de ventos para acalentar a alma. Provou dos beijos acelerados e daqueles quase parados, comprimida entre os braços de madeira.  

A cadeira não tinha nenhum fio de ouro, já não servia para sentar, mas suportava o peso das lembranças. A boca se enchia de água e de fome diante das memórias. Não era uma coisa simples, mas a relação estabelecida entre a moça e a coisa que costurava seus afetos.

Um dia resolveram tocar fogo na cadeira. A moça cor de gelo sempre que sentia saudade colocava a cadeira na varanda de suas lembranças e sentava.  

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