A Noite Mais Escura: Alvo imóvel

A caça a Osama Bin Laden por vários países da Ásia, Oriente Médio e Europa são o centro deste thriller da cineasta estadunidense Kathryn Bigelow

Os três minutos finais deste “A Noite Mais Escura” explicitam mais as intenções da cineasta estadunidense Kathryn Bigelow (“Guerra ao Terror”) e seu roteirista Mark Boal, que toda sua narrativa. Trata-se da epopéia da agente da CIA (Agência Central Americana) Maya (Jessica Chastain) para liquidar o líder da Al Qaeda, Osama Bin Laden, depois de 10 anos de perseguição em vários países da Ásia, Oriente Médio e, inclusive, Europa. Ela fica diante do corpo do “inimigo nº 01, dos EUA”, fria, encerrando ali sua missão. A emoção que dela toma conta depois é mais de tragédia, que de triunfo.

Ao torná-la o centro da narrativa, a dupla Bigelow/Boal tira do filme o caráter de múltipla ação, que seria dado pelos interesses da Casa Branca, a ação da Al Qaeda e a caçada a Bin Laden. O que se vê na tela é documental, realidade ficcionada, seguindo passo a passo a investigação comandada pela CIA em vários países. Isto mostra a capacidade dos EUA de ignorar fronteiras e governos, tornando o planeta seu território. Sua gigantesca estrutura de comunicação, de equipamentos bélicos e de recursos financeiros sustenta suas ações. Inexiste limite para o imperialismo estadunidense.

Não é apenas em “A Noite Mais Escura” que se vê isto. Os filmes da série “Missão Impossível I, II e III” também o retratam. Os agentes de suas inúmeras agências de espionagem entram e saem dos países, sem que estes saibam. Suas ações são eletrizantes. Bigelow, pelo contrário, tirou o caráter espetacular da ação da CIA. Mantém a narrativa em andamento lento. Maya se move em campos militares, barracões, salas secundárias, carros blindados. Mistura-se ao povo, frequenta restaurantes, bares, sem demonstrar tensão. Seu contraponto é a agente Jessica (Jennifer Ehle), cheia de idéias e adrenalina. O encontro de ambas é entre o cérebro e a ação.

Tortura desmente fala de Obama

Maya assiste a sessões de tortura com o olhar fixo, face imutável. O agente e torturador Dan (Jason Clarke) é tão frio quanto ela. Submete o militante saudita Ammar (Reda Kateb) a cruéis cenas de afogamento, deixa-o nu diante de Maya, enquanto Barack Obama desmente na TV que os EUA torturam seus presos. Quando as forças de Ammar exaurem, Dan se torna amável, oferece-lhe comida, suco, sob os olhares atentos de Maya. Dá a ideia de que a tortura é necessária para a CIA chegar a Bin Laden. Parece dizer: olha o que pode acontecer aos inimigos dos EUA.

As sessões de tortura são brutais, incomodam. Inclusive àqueles que durante a ditadura militar no Brasil (1964/1985) e em vários países latino-americanos, asiáticos e africanos sofreram martírios iguais. Muitos agentes destes países foram treinados pela CIA. O estadunidense Dan Mitrione (1920/1970), um de seus agentes, foi instrutor de tortura no Brasil e no Uruguai, onde foi morto durante ação dos revolucionários tupamaros. Inúmeros militantes de esquerda brasileiros passaram por câmaras de horrores montadas pela CIA. (Veja o livro “Brasil Nunca Mais”, Vozes, 1985). Sua pratica não mudou nestes 50 anos. Guantánamo e o filme são prova disto.

A justificativa para a operação é o ataque às Torres Gêmeas e suas três mil vítimas. Se o ataque da Al Qaeda é condenável, igualmente são as invasões do Iraque e do Afeganistão. Os milhares de mortos, dentre eles mulheres, velhos e crianças inocentes nestes países por drones (aviões não tripulados) e outros tipos de armas letais não justificam a ação dos EUA. Bigelow não trata desta questão. Seu filme só tem um lado: o da CIA. A Al Qaeda surge na tela através de fotos, cartazes e ações de seus agentes. É um inimigo à altura, com seus ataques inesperados em lugares inusitados, mostrando a fragilidade da Agência.

Bigelow não é Affleck

Bigelow, com suas escolhas, deixa de lhe dar rosto e de identificar Bin Laden. Criatura da própria CIA, ele foi mandado ao Afeganistão para combater as tropas da União Soviética nos anos 80, durante o governo Nadjibollah Mohammad (1986/1992). Conhecia as estruturas da Agência, suas táticas e seus agentes. Daí a dificuldade para se chegar até ele. Em “A Noite Mais Escura” ele é apenas um nome, quase um código: Abu Ahmed. Maya é seu contraponto. Ela mobiliza toda uma estrutura para chegar a ele, contrariando o próprio Diretor da CIA (James Gandolfini). Isso a justifica como personagem, num filme em que, salvo Dan, os demais não passam de traços, sem vida ou caracterização.

No entanto, Bigelow não é Ben Affleck, nem Maya é Tony Mendez. Ela dá sentido à narrativa, com montagem ágil, planos sequência bem definidos, ação que faz o filme avançar. Se Affleck, em “Argo” tende ao primarismo, ela é boa artesã. O problema de sua obra é, mais uma vez, a tendência hollywoodiana de subordinar a arte aos propósitos político-ideológicos dos EUA. E erra ao tornar heroína a agente da CIA, quando se sabe que localizar e executar Bin Laden mobilizou inúmeras agências de segurança, estruturas militares, Departamentos de Estado e de Defesa e a própria Casa Branca. Certas escolhas narrativas terminam por falsificar a realidade.

“A Noite Mais Escura” (“Zero Dark Thirty”).
Thriller/Espionagem.
EUA. 2012. 157 minutos.
Música: Alexandre Desplat.
Fotografia: Greig Fraser.
Roteiro: Mark Boal.
Direção: Kathryn Bigelow. Elenco: Jessica Chastain, Jason Clarke, Jennifer Ehle.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor