“A Pele Que Habito”: Patológica Obsessão

 Diretor espanhol Pedro Almodóvar trafega pelo horror e a ética na ciência, sem abandonar suas costumeiras obsessões

               É difícil não ver “A Pele Que Habito” sem ter a sensação de que Pedro Almodóvar, além de fã dos melodramas de Douglas Sirk (“Sublime Obsessão”), também o é dos antigos dramas de terror da Hammer e da American Internactional Pictures. Dois deles tratam do esforço de cientista (“E Deus Frankenstein Criou a Mulher”, de Terence Fischer), para corrigir deficiências físicas de uma bela garota ou usar a ciência para consignar suas próprias patologias (“A Câmera de Horrores do Dr. Phibes", de Robert Fuest). No primeiro sua criatura acaba fugindo às suas boas intenções, no segundo é dominado por suas obsessões ao infligir dor nos inimigos.
 

            Em “A Pele Que Habito” temos a fusão dessas duas características. O respeitado cirurgião plástico e cientista Roberto Ledgard (Antonio Banderas) desenvolve em laboratório um tipo de pele que substitui com sucesso a de vítimas de queimaduras graves. O método é polêmico, não aprovado pela comunidade científica, mas Ledgard leva-o adiante. Não passaria da característica insistência de cientista, não fosse usada também para outros objetivos. Em caráter privado, ele o utiliza para vingar-se do algoz de sua filha. Não bastasse isto, e trata-se de filme de Almodóvar, vê-se atraído por sua criatura-cobaia, com paixão inusitada.
 

            Como sempre, Almodóvar usa o sexo para matizar a patologia de seus personagens. O toureiro de “O Matador”, cujo método de assassinato é compulsivo, ou o enfermeiro dominado pela culpa por ter fixação na paciente em coma em “Fale Com Ela”. Mas em “A Pele Que Habito”, baseado na obra de Thierry Jonquet, ele dá outro tratamento a estes temas. Vale-se do gênero terror de forma sub-reptícia para mostrar os poderes da ciência moderna e como o cientista Ledgard a usa para punir sua criatura-cobaia. E aviva as polêmicas sobre células-tronco, transplantes de órgãos e utilização de seres humanos como cobaias. Nenhuma destas questões, no entanto, importa a Ledgard. Sua obsessão por seus experimentos em sua sofisticada câmara dos horrores tornou-se uma patologia.
 

           Almodóvar, mesmo neste amplo espectro, consegue dotar seu filme de unidade, de linearidade, ainda que use flashbacks. É um vai-e-vem que prende o espectador, o faz ligar as sequências, entranhar-se na trama. O horror aqui é sutil. Consignado através da vingança, da meticulosidade de Ledgard ao levar adiante a mutação de sua vítima, utilizando avançadas tecnologias médico-científicas, biociência, compatibilização de DNA, tornando sua criatura-cobaia diferente do que era. O resultado é assustador, pois longe da fantasia dos filmes de terror citados, o espectador sabe que, hoje, a mudança de sexo é possível. Nada do que vê, portanto, é irreal.
 

Filme às vezes
é frio, metálico


          Subjacente a esta questão, existe a da identidade da criatura-cobaia. Como alguém que passa a ter outro corpo sem o desejar ou ter dentro de si características físicas e psicológicas de sua “nova identidade” pode conviver com o corpo que já não é o seu? A dualidade a partir daí se estabelece, pois Ledgard vê na agora criatura a configuração de sua mulher Vera Cruz (Elena Anaya) e da filha Norma (Bianca Suárez). E ao confrontar-se com ambas, apaixona-se pela criatura-cobaia, num ambivalente incesto. Almodóvar, em belas sequências, joga com estas ambiguidades e passeia pelo horror sem desligar-se de suas preocupações com as questões de gênero, de sexualidade, de identidade.
 

        Mesmo assim, se nos citados filmes de terror, muito fica para a imaginação, devido às elipses, principalmente no filme de Fischer, Almodóvar é o senhor do explícito. Ele se vale da brutalidade da ação para consignar suas intenções. Recurso sempre traiçoeiro. O filme às vezes é frio, contido, gerando certo clima de distanciamento. Impressão talvez criada pelo comportamento de Ledgard. E só muda quando a costumeira verve do diretor é exposta. Principalmente no conflito de Ledgard com o irmão Zéca (Roberto Alamo) e na revelação da mãe de ambos, Marília (Marisa Paredes). Nas demais sequências, ele trafega pelo terror, se pode dizer, moderno, explícito, sem a sangueira de “Sexta-feira 13” e congêneres.
 

        Assim, não há espaço para seus mergulhos nos horrores do franquismo, nas contradições da Espanha moderna (“Abraços Partidos”), e na luta das mulheres (“Volver”), dos gays e lésbicas (“De Salto Alto”). O espectador acostumado a este tipo de abordagem pode se ressentir, por mais que seus temas lá estejam. Na verdade, trata-se de um Almodóvar menor, tentando ampliar seu leque de publico. Mas falta em “A Pele Que Habito” o humor, o deboche, o escracho, tão presente em sua obra. Talvez o tema seja árido demais para o riso ou o mundo atual caminhe para a tragicomédia.
 

A Pele Que Habito”. Drama. Espanha. 2011. 117 minutos. Roteiro: Pedro Almodóvar, baseado em obra de Thierry Jonquet. Música: Alberto Iglesias. Fotografia: José Luís Alcaine. Diretor: Pedro Almodóvar. Elenco: Antonio Banderas, Elena Anaya, Marisa Paredes, Jan Corret, Bianca Suárez.            

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