A pintura política de Ismael Caldas

A pintura de Ismael Caldas expressa o insólito e a crítica social, refletindo a consciência política do artista pernambucano durante a ditadura brasileira

Imagem: reprodução

“Ismael Caldas”, publicado pela Cepe, revela e eleva 159 fotografias da pintura de Ismael, além de carta de Francisco Brennand para ele, mais entrevistas e textos do organizador do livro Raul Córdula, José Antonio Sales de Melo, Joana D’Arc Lima e do próprio Ismael Caldas. É um livro precioso.  

Se o impulso fosse absoluto, diria que este livro é belo. Mas, primeiro, a obra  possui a beleza da estética de Baudelaire, de Picasso, que não recuavam diante do que a convenção medíocre chamava de feio. Portanto, irmã desses gênios é a pintura de Ismael Caldas. Em segundo lugar, como não se deve apreciar um livro com a mola do impulso, será melhor conter o entusiasmo para refletir passo a passo.

Mas devemos ressaltar, antes, a excelência do trabalho do pintor e crítico de arte Raul Córdula, que organizou o livro e lhe deu corpo e alma. Isso quer dizer, nas páginas há um apuro gráfico, estético, de um artista gráfico da altura de Córdula e da ótima edição da Cepe. Em muitas páginas, as imagens lembram versos do poeta Carlos Pena Filho, que escreveu  

“Olinda é só para os olhos,
não se apalpa, é só desejo.
Ninguém diz: é lá que eu moro.
Diz somente: é lá que eu vejo”

E nesse particular sentido, sem outro recurso, o apreciador de arte tem vontade de arrancar páginas do livro e deixá-las em moldura na parede. Recurso extremo, entre a tentação e o ato. Ao que associo uma frase que eu disse à editora Ivana Jinkings, em São Paulo, diante de um quadro Cícero Dias: “O sujeito que furta este quadro não pode ser considerado um ladrão”. Falei baixo, mas Ivana, ao ver as minhas mãos crispadas, muda mudou o olhar.   

No entanto, este livro é mais que o prazer do olhar. Ele estimula a reflexão sobre o artista e o papel da arte no Brasil. Nas palavras de Raul Córdula: “Ismael Caldas integrou um grupo de artistas que se destacou no Recife nos anos 1970, tempo de incertezas e inverdades, tempo ditatorial em que o outro era o posto, não o par, em qual justiça era vilipendiada ou, quando se mostrava, era falsa e cruel. Uma geração que refletia o sofrimento pessoal como parte do sofrimento alheio, geração que sofreu por ter a liberdade atingida pelo poder armado de ódio, da força sem motivo e sem fronteiras”.

E o livro avança até a pessoa do artista. Do amigo de Ismael Caldas, José Antonio (Totonho) Sales de Melo: “Ismael era um artista exigente, rigoroso e extremamente técnico em relação à sua pintura. O rigor que tinha com o seu trabalho permitia-lhe ser bastante crítico à profissão de artista. Não admitia subterfúgios nem concessões duvidosas no comércio das artes. Sua posição sobre artistas que cediam a esses apelos, aos comerciantes de arte que visavam apenas o lucro, bem como aos críticos de arte de ocasião, era às vezes excessivamente agressiva e até insultuosa”.   

Isso quer dizer: Ismael Caldas jamais pegou o caminho mais fácil, ou mais confortável, na arte e nas suas opiniões políticas sobre o mundo, os pintores e artistas. Ele era contundente, a ponto de fazer inimigos. Olhem o que falou numa entrevista de 1981, ao ser perguntado sobre a compra da série Cenas da Vida Brasileira, de João Câmara, pela Fundação de Cultura Cidade do Recife. Sem piscar, Ismael Caldas afirmou, segundo texto da pesquisadora e curadora de arte Joana D’Arc Lima:  

“Particularmente, acredito que governadores e prefeitos nomeados ou biônicos são má companhia para uma pessoa que se considera um artista independente. É evidente que esses funcionários não têm o direito (apesar de desfrutarem do poder) de, autocraticamente, nomear, eleger seus artistas prediletos e comprar suas obras com o dinheiro do contribuinte, sem consultar a ninguém….

Espero que os artistas menos conformistas e que a Associação de Artistas Plásticos Profissionais de Pernambuco tomem conhecimento dos fatos e que se peçam explicações ao Conselho de Cultura. De minha parte, acho que esse governo que temos é e sempre foi useiro e vezeiro em arbitrariedades. Isso não é novidade. Por outro lado, o ‘famoso’ artista nunca me enganou: é um carreirista nato. Ponto.”   

A propósito, olhem só o genial artista no Rio de Janeiro, sobre a sua exposição individual na Galeria Bonino, ao ser indagado por que vivia fora do circuito do Rio havia 9 anos. Ele respondeu: “Moro em outro país, o distante e exótico Nordeste”.

Mas nesse particular, a briga de Ismael Caldas era contra o desconhecimento universal sobre Pernambuco, um lugar de outra galáxia e folclórico. No entanto, poucos artistas brasileiros puderam ser tão universais, o que é quase redundante, pois a arte é sempre o particular no universal, ao mesmo tempo que o universal no particular. Mas ninguém nasce em Pernambuco por querer. Ninguém nasce em um lugar por vontade. Pode até renascer em outra terra, é inegável. Mas o modo de ser, a fala, um certo modo de ver, de agir, sai pelos poros, sem até mesmo que se tenha consciência. Vem da primeira infância, da mãe, do pai, da escola, dos amigos e amigas. A origem do lugar não explica tudo, mas dá o sangue e o inconsciente, até. Mas esse particular é o universal do ser humano, que se realiza pleno na arte.

Em frase pintada em uma tela de 1968, Ismael Caldas escreveu: “Milady, sua dor de cabeça não tem remédio”. Talvez de imediato não se perceba. Mas essa frase é como uma paráfrase de Tchekhov no conto Um caso clínico, quando o médico fala à paciente Liza: “A senhora, que se encontra na situação de proprietária de uma indústria e herdeira rica, não está satisfeita, não acredita em seu direito, e, agora, não consegue dormir”. Não existe remédio na farmácia para sua insônia ou dor de cabeça, Milady, ele quis dize. Apenas lhe dói na consciência a sua posição de classe, senhora.

É claro, assim falamos de Ismael Caldas porque ele é essencialmente um grande pintor, um dos melhores de Pernambuco, nas palavras de Francisco Brennand. E no caso destas linhas, por sua pintura, cuja inadaptação feroz ao mundo era a condenação da sociedade brasileira. Um dos seus ídolos era Lima Barreto, por toda obra e Bruzundangas.

Portanto, melhor falar de Ismael Caldas na sua pintura única e rara que o Brasil deveria conhecer. Espero que o editor nos ajude, para que o gozo da arte seja visto por todos neste pequeno número de fotografias:

Então respondam, por favor: um livro que assim organiza um pintor é ou não é belo?

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor