A transexualidade não é revolucionária, a vida é

 

Como se dá a atribuição e conformação do gênero de um indivíduo, até a sua aceitação, rejeição ou o incômodo em relação às práticas e discursos que atualizam um determinado gênero e com os quais o sujeito acaba se debatendo ao longo de toda sua vida? Seriam, a rigor, apenas pessoas transexuais as que apresentam disforia de gênero? Seria a transexualidade a única forma de manifestar a disforia como resultado da “inadequação” ou da não aderência entre todas as ontologias provisórias que constituem os seres sociais e sua relação com os construtos de gênero que orientam para a aceitação da binaridade sempre assente nas ontomorfologias sexuais aparentes? Quem é inteira e satisfatoriamente homem ou mulher?

Esses questionamentos rondam os estudos de gênero nos últimos anos, passam por teorias que borram e desestabilizam as práticas performativas, discursivas, operativas que oprimem e forjam as “identidades de gênero”. Se não há consensos gerais no campo de estudos e nos movimentos políticos emancipatórios, caminhamos para constatar, ainda assim, a precariedade da categoria “gênero”, construção falseada, mas produtiva e reposta, fundamentada em observações apressadas, interessadas e numa empiria pobre e milenar que se estabelece como rígida orientação taxonômica a partir da descrição preguiçosa e espantada do comportamento de corpos de fêmeas e machos no/do reino animal. Taxonomia que tem uma força de sugestão potente e atual e é baseada no exagero – ou não – das distinções entre formas de participar da cadeia reprodutiva, das trocas sexuais, das dimensões corporais e dos ciclos e fluxos hormonais, entre outras.

Alguns desafios ainda não solucionados se apresentam. Assumir que tanto a categoria gênero é abstrata, redutora e se mantém ao longo da história como expediente opressor dos sujeitos mulheres, da mesma forma que a própria descrição que apresenta machos e fêmeas como distinções é um sobressalto apressado do paradigma sobre o sintagma, negligente, portanto, em relação ao continuum e à sutileza que se evidenciam, não conforma um ato de má-fé ou uma sedução semântica que obscurece as formas concretas de opressão e sujeição que a história da sociabilidade dos descritos mulheres e homens nos entrega?

Começo pelas partes que me inquietam. Começo pela minha desestabilização como mulher, transexual, comunista. Caminhemos por parte.

Na pressa do presente, no sufoco da emancipação, tomamos como prática política verdades que, se fazem sentido para as sujeitas e sujeitos oprimidos, apressam-se e, na pressa, passam por ser possibilidades de alguns que não percebem que pôr em prática essas verdades-atos emancipatórias é vantagem resultativa, justamente porque a condição de praticá-las é a recepção de predisposições vantajosas em primeiro plano que obnubilam a percepção da posição privilegiada, esfumaçadas essas predisposições por camadas sucessivas e em série. Nesse sentido, se a vida pela contrassexualidade se assenta em perceber gêneros como ficções, como opressões históricas em atualização sucessiva, baseados em outro corte arbitrário que define sexos, seres fêmeas e machos e toma como paradigma positivo estes últimos, a prática individual não chegou perto de trincar a estrutura que dá sustentação às opressões de gênero na nossa sociedade capitalista, misógina, falocêntrica e se perpetua pela reafirmação de dicotomias assimétricas.

Avançamos em reconhecer que a divisão do trabalho é o primeiro imperativo que leva a essa segregação apressada e ao arbítrio que divide o que seriam indivíduos/sujeitos mulheres e homens e que, em decorrência disso, produz papéis definidos, para a exploração do trabalho das mulheres em favor da subjetivação dos homens, a partir do que se constroem e se sedimentam os gêneros como tecnologias refinadas de naturalização desse exercício de usurpação. Sabemos que a história da família, das classes, as ficções étnicas e a origem da propriedade privada avançam por aí. Reconhecemos sem muitas dificuldades que o ato de tornar-se mulher só pode significar a não recepção cumulativa de sentidos de subjetivação, os quais são reservados para os sujeitos compreendidos como homens; tornar-se mulheres é ser por decréscimo, em negativo, por alteridade que se define no repositório de tudo o que ser homem não pode comportar para sua significação. Daí não é nenhum esforço conceber as práticas de gênero como performances transitórias e provisórias, negociadas na esfera pública, que passam de corpos para corpos, de “mulheres” para “homens” e que são, pois, inventividades reguladas que, a despeito da sua arbitrariedade, apresentam sistematicidade impressionante, ao criarem, na prática, os próprios constructos socioparticipativos, a ideia abstrata que sobrevive apesar da eficácia, apesar de a sua resposta concreta não ser nem plena ou sequer satisfatoriamente encarnada.

Ainda assim, hoje as políticas de estado relutam em reconhecer os direitos civis de pessoas não heteroconformadas, cisgêneras. A escola, os dispositivos de participação cidadã, os expedientes de formação e inculcamento ideológicos permanecem binários, dicotômicos, androcêntricos e sugerem, com muita força, papéis que regulam a participação de mulheres e homens na engrenagem social, econômica e política perpetuando assimetrias milenares. Ainda hoje, estupros corretivos, assassinatos e prostituição são os destinos recorrentes de pessoas trans e homossexuais. Ultimamente, aliás, como reação, as verdades-atos, vividas como emancipação individual ou como prática de grupos restritos e ousados histórica e politicamente, são tomadas como afronta, como aberração moral a ser destruída; destruição que caminha por sanção oficial. São, no fundo, sentidas e ressentidas como soberba intelectual, como desestruturação insuportável de um código moral e que baliza o eixo ontológico daqueles que necessitam da moral burguesa e, mesmo que se intuam como válidas, são, por isso mesmo, perturbadoras demais para que se deixem sem punição.

Numa camada menos abstrata: a transexualidade e o agenciamento e assunção de identidades não binárias são fenômenos e resultados concretos e legítimos que apontam, de forma mais ou menos consciente, para a inconsistência das categorias sexo e gênero e, principalmente, para a inconsistência da correlação entre uma ontomorfologia empírica milenar que balizou pressupostos epistemológicos ainda atuantes e que orientam e fundamentam o desenvolvimento de axiomas e máximas conformativas do campo da biologia, da prática social, da psicologia etc. Axiomas e máximas que são formas de sofisticação ideológica decorrentes da complexificação do estrato social, mas que, curiosamente, ao insistirem na assimetria sexo/gênero, retêm o princípio que dá origem a essa cisão como interesse: interesse na dominação/exploração, na sua justificativa, naturalização e no seu apagamento enquanto hábito.

O nó complexo do nosso tempo é, justamente, compreender que essas constatações valem muito para apontar caminho possível para a emancipação do conjunto oprimido historicamente, mas têm espectro reduzido quando negligenciam toda relação sofisticada que consubstancia a origem da dominação/exploração; quando querem se encerrar nas práticas individuais e fazer valer a postura disruptiva como ato revolucionário suficiente e satisfatório. Primeiro porque, como parece estar exposto, é muito reduzido o acesso, em forma de conhecimento abstrato, a essas “verdades” e, mais reduzida, a possibilidade e a viabilidade de viver ou sobreviver encarnando-as como atos de subjetivação contínuos, cotidianos. Em segundo lugar, no nosso tempo, mesmo que como cacos e aos frangalhos, ainda é pouco suportável – e aqui me admito na minha contradição produtiva – romper com as ideações de plenitude que forjaram as promessas de conforto, institucionalização regulada, colocação, pertencimento e felicidade oferecidas e introjetadas pelas sutilezas perspicazes dos agentes da(s) hegemonia(s). Embora procuremos nos aproximar de uma libertação que parece vicejar o horizonte, ainda estamos capturadas e capturados dentro da família, do matrimônio, da monogamia, dos padrões de comportamento, de beleza, das estruturas de corpos, das performances sexuais, das armadilhas do desejo, do consumo, da reprodução, do afeto e da repulsa. Não só porque participamos dessa estrutura desejante, mas sobretudo porque sair dela é arriscar-se à violência, à desproteção, é vulnerabilizar-se. E para todas e todos nós, em algum grau, essa ruptura é tortura e fardo.

A transexualidade, em todas as suas formas, é um sintoma, certamente dos mais evidentes, da não aderência conformativa entre as categorias sexo e gênero e, mais ainda, da falta de garantização acerca das performances esperadas. É, no melhor sentido do termo, a anomalia que escancara a imprevisibilidade das expectativas sociais entre morfologias e subjetivações e está, seguramente, para além de qualquer sentido de mera fantasia comportamental em relação ao cumprimento de dados papéis e paradigmas de gênero. Ela é resultado maturado de uma desconformidade que não é expectativa de realização de um futuro – como querem argumentar alguns vetores de deslegitimação da vida e da atribuição de gênero de pessoas transexuais. Pelo contrário, a transexualidade é, já antes de qualquer agenciamento conformativo ou desconformativo corpóreo-simbólico (de qualquer “transição”), a própria vivência não aderente, a disforia. Dessa forma, não há, como querem ou pensam ingenuamente alguns, uma socialização masculina e feminina feliz, não problemática, mas sim, na maioria esmagadora dos casos, uma socialização transexual desde a juventude que é a percepção mesmo da violência escancarada e autorizada para a satisfação do encontro das expectativas entre morfologia sexual e conformação de gênero. Todavia, a transexualidade não chega, no mais das vezes, a ser outra coisa que a expectativa, a certeza e, portanto, a necessidade – ou inviabilidade do contrário – de existir como o gênero que não “adere” ao sexo e, nesse sentido, produzir-se reproduzindo os dispositivos que atualizam as sedimentações da própria ficção dos gêneros.

Em geral, mulheres e homens transexuais, pessoas bi e homossexuais caminham desejando e negociando a vida para alcançar a sobrevida, na sua maioria ciosos de pão, família, empregos, contas a pagar, reconhecimento do gênero de identificação nos marcos binários, que seja, pela segurança, por uma jornada de trabalho que se cumpra vestida. E essa perspectiva só pode parecer rebaixamento para aqueles que a superam pelas vantagens que cumulam ou para aqueles que esperam de nós o cumprimento dos fetiches que animam as suas pulsões disruptivas reprimidas, o seu desejo pela dissecação, uso e descarte do exótico, seja como insumo sexual ou objeto de pesquisa.

Tudo isso vale a conclusão de que revolucionário não é ser pessoa transexual ou não-binária. Isso é sintoma do tempo, evidência da atribuição de gênero como fantasia absoluta, necessária para a dominação/exploração dos sujeitos mulheres, naturalização dos papéis sociais distribuídos e violência concreta, o que, todavia, não superamos efetiva e honestamente em nós e não superaremos aos gritos e por confrontação rebelde e inócua. Revolucionário, por hoje, é pautar a não exclusão, é a luta contra o descarte, contra a subcategorização, a subcidadania. Revolucionária é a atenção às demandas específicas enquanto política pública para equalização, institucionalização. É resistir e impedir a fetichização. É encontrar a via da inclusão.

Revolucionária é a política que vai na contramão da lacração, que não pressupõe um comportamento forçosamente escandaloso, disruptivo, luminoso – plenamente absorvido pela indústria do gozo e do entretenimento, diga-se de passagem. Revolucionário é garantir a pessoas transexuais que batam cartão de ponto e que passem batidas.

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