“A Última Noite”: Funeral programado

Em seu derradeiro filme, o diretor americano Robert Altman traça com humor o fechamento de uma rádio de interior e o desinteresse dos conglomerados capitalistas pela identidade cultural e a arte.

Que ninguém se espante: “A Última Noite (A Praine Home Companion)”, do diretor americano Robert Altman, recentemente falecido, não anuncia o féretro de um programa de rádio, mas a incapacidade de uma classe de manter o bom humor para exorcizar seus fantasmas. Altman, em seu derradeiro filme, desconcerta ao mostrar em várias seqüências o interventor Axeman (Tommy Lee Jones), como os artistas o chamam, observando o escracho, o trash music, exibido pela dupla country Lefty (John C. Reilly) e Dusty (Wood Harrelson) durante sua apresentação perante um auditório lotado. Ele não está ali para avaliar performances ou se deixar tocar pelas corrosivas canções de intérpretes mambembes. Sua missão ali é tão só a de fechar a rádio e abrir espaço para a demolição do prédio onde ela funciona.
             



Durante todo o filme, Axeman, embora ausente no início do filme, intranqüiliza os artistas que o esperam a qualquer momento, para anunciar o fechamento da rádio. Nenhuma negociação é encaminhada, nenhum comentário sobre a sobrevivência ou não da única rádio em funcionamento na cidadezinha de Lake Wobegan, em Minnesota, Estados Unidos. Quando ele aparece, fica à distância acompanhando o show que se desenrola no palco para um público que se diverte com músicas românticas e country. Não um country bem comportado, mas cheio de reminiscências, deboche e louvações à família. Mas isto pouco importa, o que é importante para ele é que aquele é, realmente, o último suspiro da rádio.



             


Denúncia da frieza e indiferença capitalista



             
            
O que há de melancólico em “A Última Noite” é justamente essa visão que Altman destaca denunciando a frieza e a indiferença do capital para com o fazer cultural, mesmo que advindo da música produzida para o consumo de massa. Essa visão já estava presente em dois filmes seus: “O Jogador(1992)” e “Quando os Homens são Homens (1970)”. No primeiro, um produtor de cinema comete assassinato, indiferente às conseqüências que poderia trazer para sua carreira, e no segundo dois amantes travam intensa disputa em torno da exploração de um bordel na época da exploração do ouro nos EUA. Em “A última Noite”, os donos da rádio decidem vendê-la para curtir a aposentadoria, pouco se importando com as referências culturais da cidade onde ela funciona e o emprego de técnicos e artistas. É assim que as coisas funcionam nesta etapa de capitalismo financeiro: não há referências que se sustentem, apenas interesse pelo lucro imediato.



             
A rádio em questão era a única que funcionava na cidade há mais de 50 anos. Dotada de auditório, palco, elenco de cantores e técnicos, ainda tinha um público cativo que se divertia com as piadas e as músicas das duplas que se apresentavam durante o programa “Companheiros do Rádio”. Ao conglomerado do Texas que a adquiriu nada disso importava, ela poderia render-lhe mais ao ser demolida e ser transformada num amplo estacionamento. Assim, a Axeman cabia observar o derradeiro show e cumprir o determinado pelos novos donos.Exemplos iguais a estes se multiplicam pelo mundo afora, tomado pela máxima capitalista, de que se não dá lucro, deve ser fechado e convertido em outro negócio que torne os proprietários mais ricos.  


 


            
Interventor demonstra ignorância sobre arte


 


            
Altman, com sua capacidade de fazer humor a partir de temas aparentemente simples, não esconde suas críticas ao sistema. Elas se materializam em símbolos o como do anjo (Virgínia Madsen) que vaga pela rádio, enquanto os cantores se revezam no palco e transitam pelos corredores e camarins, e em metáforas como a de Axeman, que ignora quem seja Scott Fritzgerald (“Suave é a Noite”, “O Grande Gatsby”), um dos maiores escritores norte-americanos. Essa crítica à desinformação do interventor confirma o tipo de gente que atua no mundo do capital. E, por outro lado, comprova a necessidade de ele ter a seu lado o anjo, que exerce outro papel, o de projetar os anseios e aflições dos artistas, funcionários e técnicos que perambulam pelos estúdios da rádio feito zumbis, sem saber qual será seu futuro.



            
É este anjo que irá projetar o que Altman gostaria que acontecesse a Axman, portanto aos donos do conglomerado. Mas também é lúcido o suficiente para afastar qualquer possibilidade de o espectador acreditar que isto bastasse. Tirar de cena o exterminador não significa derrotar o conglomerado, mantendo a rádio em  funcionamento.Axeman pode ser eliminado, mas a pretensão do conglomerado será mantida. Aos artistas nada resta senão procurar, cada um, seu caminho. Antes, porém, eles se revezam no palco para deliciar o público com suas músicas, piadas e comerciais improvisados que representam também uma crítica ao que eles viraram: a própria piada. Se eles sustentam o programa e a rádio no ar, não rendem os lucros exigidos pelo conglomerado para manter seus empregos, motivo pelo qual são vistos como culpados pelo impasse a que chegam eles e os novos donos da emissora.


 


           
Conglomerado vê rádio apenas como negócio



 
           
A rádio é deste modo apenas um empreendimento capitalista, não um veículo de comunicação, responsável por informação, diversão e cultura. Qualquer visão em contrário atesta ingenuidade, pois estas ações, configuradas nos programas levados ao ar, para existirem precisam dos comerciais para continuar sendo produzidos. Em “A Última Noite”, Axeman acha cantores, piadas e comerciais velhos, ultrapassados, cansativos, justificando o fechamento da rádio. Dito desta forma, parece que todo o filme gira em torno destas questões, mas trata-se do que realmente interessa para a compreensão do que se passa na tela. Se analisado apenas o show em si, o sentido do filme se resume às músicas pontuadas pelo escracho da dupla country Lefty e Dusty, nas lembranças chorosas das irmãs Rhonda (Lily Tomlin) e Yolanda (Meryl Streep) e na decadência explícita do velho cantor Chuck Akers (L.Q. Jones).



          
Altman demonstra admiração por suas criações. Adora aquele grupo de artistas que sobrevive numa forma de rádio ultrapassada. Há muito as emissoras modernas abandonaram os programas ao vivo, os artistas contratados, substituindo-os pelos DJs, músicas e entrevistas gravadas e apresentadas como se estivessem acontecendo ali, naquele momento. Salvo por relíquia, nostalgia, alguém manteria em funcionamento uma emissora com tal estrutura. A dupla Lefty e Dusty, com suas músicas debochadas, de sentido duplo (e muitas vezes escrachadas), nada perde para os cantores de rap, com suas criações abertamente eróticas, quando não pornográficas, preconceituosas e ofensivas à mulher.


          



Altman desfila a breguice americana


 


          
Notável em “A Última Noite” é como Altman pontua a cafonice americana através de Rhonda e Yolanda. As duas são bregas, sentimentalóides, devotadas à memória da mãe, que sabemos depois, não era flor que se cheire. Ambas são o contraponto da jovem Lola (Lindsey Lohan), filha de Yolanda, que é depressiva, pessimista e insegura. E também é notável quando Altman acompanha a derrocada do velho ídolo-country, Chuck Akers. Ele desaba sua decadência no palco e no camarim, tal um ícone que já não se sustenta. Sua morte é seu momento de glória, pois atesta sua homofobia sem meios tons. Mas Altman também homenageia o artista-apresentador, através de G.K (Garrison Keillor), que se vira no palco cantando, anunciando comerciais e apresentando os artistas.



           
G.K. é o tipo faz tudo, com tirocínio e verve suficientes para criar situações hilariantes, como as de quando a assistente de palco, Molly (Maya Rudolph), perde a página do roteiro e ele não sabe o texto do comercial a ser lido e se vale de uma embolada da qual participa todo o elenco de cantores, técnicos e músicos. Uma das grandes tiradas de Garrison Keillor, roteirista do filme, baseado em seu argumento em parceria com Ken LaZebnik e em seu próprio programa de rádio. O improviso permite a Altman desfilar uma série de observações sobre costumes, tiradas sobre a vida dos artistas e a vida americana. Coisa que ele destila sem poupar a nenhum personagem, inclusive ao segurança Guy Noir (Kevin Kline), detetive particular aposentado pela falta de casos enrolados para investigar. Narrador da história que se desenvolve em vários níveis, criação típica de Altman, ele tem pavor à morte e a problemas em sua área, ao contrário de um detetive de filme noir, que procura o perigo e a paixão.


 


         
Altman, observador atento da realidade americana


 


         
Como se vê é todo um mundo retratado em dezenas de filmes que se vai, sem substituições à vista. Inclusive com a perda de criadores iguais a Altman, observador atento da vida americana, que não terminou o filme, missão que coube ao diretor Paul Thomaz Anderson (Magnólia), herdeiro de seu estilo entrecortado, com dezenas de personagens. Em “A Última Noite”, a narrativa perambula pelos diversos personagens, tendo como eixo central o palco onde atua G.K. E sem perder por um instante as particularidades de cada um. Lily Tomlin, uma de suas atrizes mais constantes (atuou em “Nashville”, 1975;”O Jogador”, 1992; “Short Cuts – Cenas da Vida”, 1993), domina a seqüência em que ela e Meryl Streep rememoram a relação de suas personagens, Rhonda e Yolanda, com a mãe. Altman coloca-a em primeiro plano e ela brilha, cresce e se impõe. É um daqueles momentos dignos do grande cinema que não se vê mais.



         
 “A Última Noite”, porém, não se iguala a “Nashville”, “Imagens”, “M.A.S.H” e “Short Cuts”, os melhores de Altman, mas conserva aquele frescor de grande cineasta que domina a sua arte e tem um olhar atento para as contradições de sua sociedade. Mesmo assim, tem a leveza de “De Corpo e Alma”, obra de Altman sobre o mundo do balé e a difícil luta de uma companhia para se manter às custas (de novo) de patrocínio privado; e o movimento alucinado de “Nashville”, o brilhante olhar de Altman sobre o fascínio americano pelo assassinato de seus ídolos e a matança em série, reflexo de uma sociedade patologicamente em crise. Altman deixa vários discípulos na forma de montar uma história com vários focos, a exemplo do Paul Thomas Anderson e do mexicano Alejando González Iñárritu, e até mesmo com a agudeza de suas críticas ao sistema capitalista.



            
“A Última Noite” é um bom final de carreira, rende boas risadas e tipos fascinantes. Principalmente ao retratar um gênero, o country, que exerce forte influência sobre a música brega sertaneja brasileira, popular por excelência. Mostrar esse universo destacando sua dependência dos conglomerados para sobreviver é uma visão aguda que só alguém como Altman poderia ter. Vai deixar saudades, numa época em que o cinema norte-americano carece de boas histórias e diretores comprometidos mais com a arte do que com a chamada “indústria cinematográfica de Hollywood”. Mas este é outro assunto.


 



“A Última Noite” (Prairie Home Companion). EUA, Comédia, 2006, 105 minutos. Roteiro: Garrison Keillor, baseado em argumento de sua autoria em parceria com Ken LaZebnik e em seu programa  de rádio. Direção: Robert Altman.

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