“A Vida Invisível”: Crueldade em tempos patriarcais

Ao abordar a luta de duas irmãs contra o patriarcalismo no Brasil dos anos 50, cineasta cearense Karim Aïnouz antecipa a luta pela liberação feminista

Há ditames de poder que jamais permanecem sozinhos. Em cada etapa dos históricos confrontos entre as classes sociais, eles continuam a se mesclar como camaleões para continuarem a ditar comportamentos. Neste “A Vida Invisível” eles se configuram no patriarcalismo, conservadorismo e machismo do imigrante português Manuel (Antônio Fonseca) pai de duas filhas no Rio de Janeiro dos anos 50. A mais nova Guida (Júlia Stocker) difere em muito da mais velha Eurídice (Carol Duarte). Nenhuma delas, porém, escapará às cruéis imposições da época.

Com este tema central, o cineasta cearense Karim Aïnouz (Fortaleza, Ceará, 17/01/1966) e seus co-roteiristas Murilo Hayser e Inés Bortagaray constroem sua narrativa a partir do romance da escritora e jornalista pernambucana Martha Batalha (Recife, 1973). O fato detonador da ação, o leitomotiv, é a paixão da jovem Guida pelo marinheiro grego (Nikolas Antunes) a surgir para ela como o príncipe que lhe promete a travessia por mar até a Grécia. De temperamento livre e disposta a realizar seu sonho, ela termina por se insurgir contra as imposições patriarcais do pai.

A época, contudo, não lhe favorecia, à mulher “cabia obedecer” ao patriarca, fortalecido pelo conservadorismo e o machismo. À mãe Ana (Flavia Gusmão) restava tão só apoiar a decisão marido, Estas formas de controle familiar e social, anacrônicas ainda hoje, terminam ditando o que era visto como recurso para manter a família unida. A dupla Aïnouz/Batalha estrutura suas obras, principalmente nesta versão cinematográfica, como o fato desestruturador da família Fonseca. Não só porque inexistiu diálogo com sua filha, como a própria sociedade da década de cinquenta o exigia.

Aïnouz estrutura a danação de Guida

O espectador se vê no reverso de “Os Deuses Malditos (1969)”, no qual o cineasta italiano Luchino Visconti (02/11/1906-17/03/1976)) encena a desestruturação de uma família burguesa pela degeneração e as tendências hitleristas. Inexiste qualquer controle pela família, pai e mãe estão em plena decadência moral e o poder lhes esvai. Ocorre o contrário neste “A Vida Invisível” há controle demais sem avaliar as consequências, dado ao comportamento de Guida. Mais solta, apegada às novas ideias e, sobretudo, entregue ao modo de vida a apontar para as novas gerações.

Era o avançar do pós-guerra, as mulheres começavam a trabalhar e descobrir as vantagens da liberdade e a validade de suas escolhas. Manuel não atentou para estas nuances ao radicalizar, pois seu poder foi supostamente posto em questão. Guida viu-se, então, obrigada a buscar seu próprio sustento. Preparo algum recebeu do pai e da mãe para enfrentar as dificuldades da vida fora da família. Nem profissão tinha para amenizar os choques com a realidade das ruas e de ir em busca de emprego e do lugar para morar. Só fôra preparada para ser esposa e dona de casa.
Aïnouz estrutura estas sequências como a danação de uma jovem cumprindo sua sentença na metrópole brasileira da década de 50. Nenhuma relação tinha mais com os pais e sequer com a irmã Euridice. É agora deserdada e sem ter onde passar a noite. A paixão pelo marinheiro a leva ao quarto da maternidade dividida com garotas tão desamparadas quanto ela. Aïnouz não utiliza sequências ou cenas preparatórias, o espectador se dá pelo lhe acontece através das mudanças dos espaços cênicos. Ele mesmo tem de se localizar na narrativa para entender o quanto ela decaiu.

Filme trata da falácia do patriarcalismo

Há toda uma construção dramática a dividir a história em duas tramas paralelas. Numa estão os descompassos de Guida, caída em desgraça com a família, noutra é desenvolvida a história de Eurídice. Mais centrada se divide entre o companheiro machista e mal-humorado Antenor (Gregório Duvivier) e suas aspirações a concertista ao piano. A decisão do pai a afastou de Guida sem lhe deixar um ponto de referência. Crueldade da qual nem se dá conta, afinal a decisão do pai é irrecorrível dadas às decisões patriarcais. Eurídice não tem ideia das razões do pai e o ocorreu à irmã.

É simplesmente a questão moral a predominar como ainda acontece em pleno século XXI. Ainda existem retrógadas vozes a clamar pela punição das “infiéis” em suas falas fora da realidade da mulher pós-conquista da liberação feminina na década de 60. Aïnouz, centrado nas construções literárias de Batalha, se fixa na radical punição aplicada por Manuel à filha. É onde o total despreparo para a vida fora da família emerge em sua inteireza. Ser condicionada aos afazeres domésticos, à maternidade e à vida conjugal não lhe permite utilizá-los para sua sobrevivência na sociedade em que a profissão é o instrumento para buscar o sustento real.

É ao longo dos 140 minutos deste “A Vida Invisível” que Aïnouz justifica não só a realização da melhor obra de sua carreira, com o Prêmio de Melhor Filme da “Mostra Um Certo Olhar” do Festival de Cannes 2019. Ainda na segunda parte, ele desenvolve o calvário de Guida, mostrando ao espectador a falácia do patriarcalismo e da moral burguesa. Para se sustentar ela trabalha numa fábrica como auxiliar, muitas vezes correndo risco de se acidentar. Até o operário afrodescendente não entende como uma mulher de sua classe pode aceitar trabalho a exigir aquele sacrifício.

“Família não é sangue é amor”, diz Filomena

Suas dificuldades não se restringem apenas ao de sujeitar àquele trabalho, não por ser o único que lhe restou, mas, sim, pela forma como chegou a ele. Mesmo não a levando a sentir-se inferiorizada é o meio de se sustentar para pagar a república em que divide o quarto com a afrodescendente Filomena (Bárbara Santos). A frase desta durante conversa entre as duas diz muito sobre o que as trouxe às camadas proletárias. “Família não é sangue, é amor” lhe afiança a afrodescendente que agora lhe faz companhia. As duas têm muito em comum por serem igualmente marginalizadas e exploradas como mulher e operária.

O que interessa a Aïnouz, vê-se pela forma como enquadra Guida, é torná-la multifacetada, não linear. Isto se vê na melhor e mais impactante sequência deste “A Vida Invisível”. Filomena tornou-se de tal modo sua grande amiga e conselheira que ao vê-la doente e sem dinheiro para o tratamento hospitalar utiliza o mais milenar recurso feminino. É literal, sem nuance ou afoita entrega ao seu chefe como único intuito. É encenada por Aïnouz num único take com enquadramento direto e em poucos segundos. A louvável ação soterra qualquer tipo de moralismo ou punição por ter se valido do próprio corpo em benefício de outrem. E inexiste culpa nisto.

Entende-se ao longo da narrativa ser este um filme sobre os marginalizados pelas estruturas capitalistas e as famílias condicionadas à moralidade patriarcal. O que pesa não é ter a filha avançada, dada às liberdades amorosas, mas por ter a família como a sustentação de seu nome perante a vizinhança, seus próprios parentes e a própria sociedade burguesa. São estruturas sociais que, enfim, contam mais para o patriarca. Pouco importa para Manuel se as duas filhas não se vêm ou se comunicam.

“Eurídice dribla o machismo de seu companheiro Antenor”

Além de mulher a enfeixar todas as nuances de penalizada pelo patriarcalismo, ainda pesa sobre Guida o fato de ter se transformado em mãe solteira. Não fosse por Filomena, ela não teria nem condições financeiras ou psicológicas para cuidar do filho Chico. “Cuide bem dele, ele será um bom homem”, lhe afiança a amiga. É quando se destaca o cuidado do roteirista e, por que não, do diretor ao mostrar o compartilhamento de ideias e o companheirismo não tido por Guida com o próprio pai. Daí ser ele responsável por ter encontrado em Filomena a amiga e irmã que jamais teve em sua fugidia relação com Eurídice.

O segundo eixo narrativo é igualmente importante para se entender os diferentes tratamentos dados por Manuel às duas filhas. Eurídice se vê entre se profissionalizar como pianista, cuidar do pai, tolerar as indiretas machistas de Antenor e cuidar da filha pequena. Ela se equilibra bem no universo patriarcal, onde os espaços estão delimitados. Suas rusgas com o companheiro são pontuais, Antenor entende o que ela representa para ele e não irá afrontá-la, porquanto ele não irá forçá-la a abdicar de seu único sonho. Desta forma, Aïnouz não torna sua narrativa maniqueísta, com um lado só num universo digno de grandes possibilidades dramáticas.

Com estas duas linhas dramáticas paralelas, ele leva o espectador a diferenciar a construção das duas personagens principais. Há grande diferença sobre o que Guida e Euridice representam para o patriarcal Manuel. A mais nova não mereceu dele nenhuma atenuante. Já a mais velha tendente a não se insurgir, não põe o nome da família em risco. Mesmo que não se deixe dominar nem por ele ou Antenor. O importante é que continue mãe de família, como na bela sequência em que toca sonata como concertista para a mesa de professores-músicos. Nada demais, a imagem da família continua limpa, afinal ela pode se rebelar, mas nem tanto.

Todo moralismo e a imagem da família Manuel se esboroa

A objetividade de Aïnouz em duas tramas paralelas é exemplar. Não se perde em rocambolismo com sua câmera. Sua diretora de Fotografia, Helène Louvart usa lentes e filtros que diferenciam as duas linhas dramáticas paralelas. Há um contraste entre o modo como ela enquadra as duas personagens centrais. Eurídice está quase sempre sentada na bem iluminada sala de seu apartamento. E ela usa aqui o foco mais aberto, pois há sempre algum movimento. É criativo o modo como ilumina a sequência em que Euridice e Antenor estão no mesmo quadro. Um lado da sala fica escuro e o outro a iluminação deixa o espectador ver a rua pela janela.

Os enquadramentos das sequências com Guida são mais variados, pois combinam cenas de rua e de ambientes (cenários) fechados. Sua mobilização é mais intensa e vão do bar à fábrica, do quarto do hospital ao cômodo que ela divide com Filomena. Há toda variedade de planos e enquadramentos que mantêm o espectador atento. Mas são nas sequências em que seus companheiros procuram ajudá-la a se adaptar ao estafante trabalho que a câmera de Louvart fica quase rente ao piso. É o bastante para o espectador vê-la distante da imagem de moça de classe média.

A importância do enquadramento neste tipo de cena está em captar o que o espectador não espera. A encenação o levará à emoção que a posição da câmera indicada pelo diretor e executada pelo diretor de fotografia tiver. É o caso do que ocorre em sua entrega ao seu chefe no estreito cômodo da fábrica devido à urgência de obter dinheiro. Inexiste qualquer tipo de erotismo nesta entrega feita por ela em solidariedade à amiga Filomena. Os movimentos são mecânicos e o som inexiste. Só resta da parte dela as boas intenções e dele o exercício de algo fortuito.

A narrativa dividida em duas eficientes e bem estruturadas tramas permite a Aïnouz e seus co-roteiristas Murilo Hayser e Inés Bortagaray construírem o desfecho em anticlímax. É Eurídice na terceira idade com os traços fisionômicos e os cabelos brancos da icônica atriz Fernanda Montenegro (16/10/1929). Todo moralismo e a imagem da família se esboroa como num daqueles melodramas onde a verdade emerge com força tal que nada mais sustenta a falácia do moralismo e patriarcalismo. E assim o mistério entre as duas irmãs é desvendado sem glória alguma para Manoel. Dele resta só a crueldade e agora a frieza de Eurídice.

Desfecho mostra a agilidade da montagem de Parplies

Em suma, não se vê passar os 140 minutos deste “A Vida Invisível”, condensados pela ágil e criativa montagem de Keike Parplies. Ela flui ao ritmo de duas tramas dramáticas cujas ações são paralelas. A elas se somam a segura direção de Aïnouz em sua melhor obra. Há, sem dúvida, todo trabalho feito por ele com seus atores, principalmente as jovens atrizes Júlia Stochler, Carol Duarte e madura Bárbara Santos em grandes performances. E não se deve esquecer dos preciosos minutos em que Fernanda Montenegro está em cena. Sobre ela recai o peso de desvendar o que jamais imaginou ter acontecido. Sua reação é de quem não se deixou apanhar pelas aparências.

Com seu filme, Aïnouz forma com os pernambucanos Kleber Mendonça Filho (22/11/1968) e Juliano Dornelles (1980), diretores de “Bacurau“o trio de premiados em Cannes neste produtivo ano de 2019. Para Aïnouz ainda resta a possível escolha para concorrer ao Oscar 2020 de Filme Estrangeiro entre os tantos indicados por vários países. De qualquer modo o cinema nacional está cada vez mais vivo. Aliás o que agora lhe acontece repete os anos Fernando Collor (15/03/1990-29/12/1992), Como ele, o Governo Bolsonaro só vê as artes, em particular o cinema, com imagens fora de foco. Só o Governo Lula não fugiu das salas de exibição. Com ele o cinema nacional foi fortalecido e renasceu.

O cinema é o espelho em imagens da realidade de qualquer povo e de seu país. Por sua capacidade de se multiplicar hoje em várias mídias, ele pode encenar e levar à reflexão de milhões de brasileiros suas reais condições configuradas na realidade. Justo o que as elites, a burguesia e o poder transitório temem ver discutido em exibições nos cinemas, nas TVs, em DVDs e nas redes de TV pagas. Basta assistir e refletir sobre o que lhe escondem. E como indústria rende empregos e divisas para o país e, além disso, forma artistas, técnicos e plateias educadas e bem informadas.

“A Vida Invisível”. Brasil. 2019. Drama. 140 minutos. Música: Benedikt Scheffer. Edição: Keike Parplies. Fotografia: Helène Louvart. Roteiro: Karin Aïnouz, Murilo Hayser e Inés Bortagaray, baseado no livro “A Vida Invisível”, de Martha Batalha. Diretor: Karin Aïnouz. Elenco: Júlia Stochler, Carol Duarte, Fernanda Montenegro, Antônio Fonseca, Flávia Gusmão, Gregório Duvivier, Bárbara Santos.

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