“A Vizinhança do Tigre”, frutos da “Caixa”

Em filme sobre jovens da periferia de Contagem/MG, cineasta mineiro Affonso Uchoa cria um universo no qual eles se alienam de si mesmos.

Por longo tempo o espectador sente certa estranheza diante das situações que se desenvolvem na tela. Os personagens, jovens afrodescendentes da periferia, tecem conversas circulares, restritas ao cotidiano imediato. Entram e saem de salas, quartos, cozinhas, perambulam por terrenos baldios, desligados de seu meio familiar e das estruturas político-sociais que condicionam suas existências. Suas ações, neste “A Vizinhança do Tigre”, terminam por matizar outro tipo de jovem brasileiro.

Nem se trata de ficção ou documentário, mas de uma mescla de ambos. Para complicar inexiste leimotiv ou contraposições, sequer existe uma história em que o espectador possa se apoiar. Ao construir seu filme desta forma, o cineasta mineiro Affonso Uchoa (Mulher à Tarde) elimina qualquer estruturação narrativa, obrigando-o se situar ou rechaçar personagens e situações incômodas.

Mas, aos poucos, numa sucessão de planos-sequência em variados cenários do Bairro Nacional, periferia de Contagem, Grande Belo Horizonte, ele vai apreendendo as intenções de Uchoa. O ambiente lhe é familiar, vê os morros do aglomerado, as ruas de seu entorno, as casas de tijolos sem reboco e os jovens que cresceram juntos. Há uma simbiose entre eles, uma semelhança de fisionomias, um diálogo fácil, sem rusgas e desníveis sociais. Nada ali os diferencia.

Neguin pode ser o próprio tigre

Assim, o espectador se dá conta da conversa de Neguim (Wederson Patrício) com Junin (Aristides de Souza) sobre sua capacidade de se livrar da vítima. “Ah, eu mato, sim!, esbraveja Neguin. A duplicidade deste diálogo é a primeira contraposição do filme, em relação ao entorno e ao que ele, supostamente, faria. E se pode intuir sua propensão ao crime. Uchoa os filma em câmera baixa, acentuando sua periculosidade e a dissimulação de seu “comparsa” Junin.

Neguin, com seu riso desbragado, suas bravatas e brincadeiras, é o personagem mais complexo do filme. Afeito a palavrões, é visto em diversas situações que permitem ao espectador fixá-lo, entendendo sua perambulação de casa em casa, de terreiro em terreiro. Este é o recurso de que se vale Uchoa e seus corroteiristas (Veja fica técnica), para ligá-lo aos demais personagens: Junin, Menor (Mauricio Chagas), Eldo (Eldo Rodrigues) e Adilson (Adilson Cordeiro). Ele é o transitante, que jamais menciona a família, a escola ou suas ambições; sua vida se resume a circular por costumeiros recantos.

Através dele, Uchoa traça a linha dramática da ficção ao recriar as situações vividas por Neguin e os amigos diante da câmera. Enquanto a do documentário advém da veracidade dos cenários, de eles transportarem suas vivências para a tela, das raras contraposições, seja de personagens contra seus inimigos, seja das situações que ponham suas vidas em perigo. Isto implica em Uchoa não criar expectativas, só encadear os entrechos.

Neguin e amigos são desenraizados

Surgem daí sequências de Neguin e Adilson invadindo o quintal do vizinho para colher frutas e desandar em depreciativas brincadeiras, mostrando seus desenraizamentos. Ou a ausência de perspectivas, matizadas nas sequências em que Neguin e Junin, ou Neguin e Adilson refestelados no sofá enquanto fumam baseados. Situações nas quais a ligação com a escola, a relação com seu meio, enfim, as influências das estruturas político-sociais, cedem espaço à derrisão e ao alheamento.

A reversão deste contínuo só ocorre quando Adilson é obrigado a repor o que “pegou” numa saída. E, enfim, entende seus descaminhos. Uchoa usa duas sequências para a crucial mudança dele: I – a da conversa com Eldo. “Tenho de fazer alguma coisa… Voltar a estudar. Enquanto os outros têm carro, moto, eu estou aqui…”; II – a da mãe ao preparar chá de ervas e lhe dar para beber, num místico ato-afro religioso,

São as únicas sequências em que Uchoa usa a contraposição para mostrar a situação vivida pelos cinco jovens. E desvendar a “Caixa” na qual o sistema capitalista/burguês os limitou, ao bloquear sua inclusão político-econômico-social. Ao escapar, teriam voz e ação, usando sua própria câmera para expor sua visão da “Caixa” em que foram fechados, devendo dela se libertar por sua própria ação. E defender o conquistado e ampliá-lo sem concessões até a vitória final.

Uchoa constrói filme diferente

Contudo, Uchoa tornou este “A Vizinhança do Tigre! “uma obra coletiva, dividindo sua construção com seus parceiros, e se restringindo à direção e à fotografia. Usa a câmera como quem está ali para flagrar, não para retirar dos atores amadores uma interpretação mais próxima do real. Ela fica à distância, muitas vezes baixa, há pouca luz e os cenários reforçam a origem de classe dos jovens. E, sobretudo, sabe eliminar o leitmotiv e a narrativa deixando o espectador buscar sentido no que vê na tela.


“A Vizinhança do Tigre”. Brasil/Contagem. Drama/Ficção/Documentário. 2014. 94 minutos. Montagem: Luiz Pretti, João Dumans, Affonso Uchoa. Fotografia: Affonso Uchoa. Argumento/roteiro/diálogos: Affonso Uchoa, João Dumans, Aristides de Souza, Maurício Chagas, Wederson Patrício, Eldo Rodrigues, Adilson Cordeiro. Direção: Affonso Uchoa.

(*) 17ª Mostra de Tiradentes 2015. Prêmio Itamaraty de Melhor Filme.

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