“Abraços Partidos”: Corações cheios de culpa

Almodóvar faz filme dentro do filme, abordando temas que lhes são caros, trazendo a história para a Espanha atual, cheia de frustrações, referências ao cinema, à corrupção e à presença chinesa na economia espanhola

Nada mais parecido com um filme de Hollywood do que uma criação de Pedro Almodóvar. Ele mesmo não esconde esta sua predileção. “Entre as múltiplas formas de fazer um melodrama, escolhi a mais luxuosa. Podia fazer um melodrama seco e essencial, como Cassavetes, ou um melodrama em que o luxo e os artifícios fossem tão expressivos como s personagens de Douglas Sirk. Preferi a estética hollywoodiana. É desta maneira que vejo a história e tenho a intuição de que assim ela está mais próxima do espectador. Como já disse, o que gosto no cinema é o artifício e a representação(*)”, diz a Frederics Strausss, discorrendo sobre seu filme “Salto Alto”, mas que vale também para este “Abraços Partidos”. Neste estão condensadas as idéias contidas neste trecho do livroentrevista em que analisa o processo de criação de cada um de seus filmes. Usadas em detalhes em sua última produção, com intensas cores, entrechos entrecruzados, filme dentro do filme, personagens saídas dos melodramas dos anos 40 e 50, mulheres frustradas, homens possessivos, jovens em conflitos com os pais sem coragem para enfrentá-los.

Nem por isto, temos cópias de filmes de Douglas Sirk (“Tudo o Que o Céu Permite”, “Palavras ao Vento”), retalhos de Rainer Werner Fassbinder (“Lola”, “Lili Marlene”), embora sequências como as de Severine (Penélope Cruz) descendo a escada, em rodado vestido de largas listras pretas, ou sua queda degraus abaixo, nos remetam a um só tempo a Sirk e a Hitchcock. Mais propriamente à “Sabrina” de Billy Wilder, que consagrou Audrey Hepburn, como ícone do cinema. Nelas, no filme dentro do filme, na metalinguagem em que as épocas se fundem; se sobraem o artifício, o clima dos anos 50. Há, no entanto, um quê de deboche à Almodóvar nas sequências seguintes, nas conversas de Sevérine com as ex-mulheres do amante. Acompanhadas de comentários sarcásticos sobre o oportunismo da burguesia nestas situações: a apropriação da cocaína deixada pelo amante fugaz de uma delas. Situações que revertem logo as referências. Almodóvar parece se divertir com estas mudanças súbitas. Está num caso e imediatamente aquela linha narrativa sofre uma interferência e o espectador, se não prestar atenção, não sabe mais sobre o que ele está falando.

Almodóavar passeia pelas obrasprimas
de outros cineastas

Principalmente porque em “Abraços Partidos”, como já dito, os temas se entrecruzam. Ele, Almodóvar, usa a estética do melodrama para falar sobre a paixão doentia do empresário latinoamericano, Ernesto Matel (José Luis Gomez), radicado na Espanha, e ao mesmo tempo trata do desprezo metamorfoseado em escárnio, nojo, de Lena por ele. Passeia então pelas referências às obrasprimas: “Viagem à Itália”, de Roberto Rossellini, “Monika e o Desejo”, de Ingmar Bergman, e, sobretudo, “O Desprezo”, de Jean-Luc Godard, para situar o que se vê na tela. Não é mais a súbita descoberta de que o amor acabou como nestes filmes, mas a resistência de Lena a se entregar ao milionário a que é obrigada a se submeter por questões familiares. O escárnio só é suportável, equilibrado, quando ela se apaixona pelo cineasta Mateo Blanco (Lluís Homan).

Ela, embora no filme dentro do filme que interpreta seja a mulher idealizada, na “vida real” é obrigada a se submeter a esta dualidade. Tem um lado aceitável, elogiável, e outro nem tanto. Matel se aproveita disto para mantê-la ligada a ele, ainda que à custa de mimos, de dotá-la de luxo. O amor que guarda dentro si, no entanto, ela dedica a Mateo. Um lado dela exposto de forma rasgada por Almodóvar, cujos personagens não se furtam de dizer o que pensam, quase sem sutileza. Carnais, viscerais, eles vivem intensamente suas paixões. Quase fazendo o expectador esquecer das mudanças bruscas de rumo, dos sentimentos obscuros, escondidos nas sombras.

Personagens são culpados
por algum feito no passado

Cada um deles é sempre culpado por alguma coisa no presente ou no passado. Matel é acusado de subornar funcionários do governo para vencer concorrências (não, Almodóvar não fala em cuecas e meias), de comprar tudo que encontra pela frente, inclusive mulheres, para atender a seus apetites de poder. Há Judite Garcia (Blanca Portillo), empresária de Mateo, fazendo jogo duplo por razões que só depois se saberá, e notadamente Mateo, cujo vértice Harry Caine, ele usa para escrever novelas policiais, centradas na literatura noir, e também esconder a tragédia que lhe deixou cego e da qual procura esquecer, sem que o consiga.

Nada mais Almodóvar do que estes personagens. A mãe de Raimunda (Penélope Cruz), em “Volver”, também guarda um segredo terrível, ou o Benigno (Javier Câmara) de “Fale com Ela” usando de artimanhas para ficar perto da amada Alícia (Leonor Watling). Só que estes segredos neste “Abraços Partidos” terminam por se revelar através de sequências bem encadeadas em que eles brotam quase suavemente. Almodóvar consegue mantê-los em andamento lento para o espectador saber de fato de que se trata. Entrelaça-os com situações vividas por Mateo e Lena, o drama que ele enfrenta agora, desencantado, pouco se interessando pelo presente. Os longos flashbacks, com enquadramentos à Yasujiro Ozu do papavento laqueado, girando numa lunar estrada de Lanzarote, É o drama para além do limitado espaço do estúdio, uma fuga às luxuosas salas e quartos da mansão do burguês Matel e da caça que este empreende ao casal Mateo/Lena. Tem-se o mar, a terra escura, a paisagem árida para um amor cheio de desencontros.

Diretor desmonta truque
para mostrar ilusionismo

Ali é onde as vidas de Judite e Mateo se encontram em razão de um passado que ele já esqueceu e ela insiste em recordar. As referências hollywoodianas são transformadas em puro Almodóvar. Vale-se dos recursos de cinema para mostrar ao espectador que o visto por ele é um truque. O próprio cinema é um truque, diferente do teatro centrado nos personagens, em que o “real do palco” pode ter várias camadas, mas não é ilusionismo. Ele, Almodóvar, desmonta seu próprio truque para confirmá-lo ao espectador. Em longos flashbacks ficamos sabendo de que se trata uma e outra situação. A morte de um amor, transformado em ódio, e o final do casal Mateo/Lena para que Judite possa se redimir. De novo, o exercício almodóvariano se impõe. Como em “Ervas Flutuantes”, ela tem de abrir-se para o filho. Ozu, quando a verdade emerge, o faz por meio do confronto entre pai e filho, com este transbordando ódio – Almodóvar prefere o anticlímax, quase um alívio para ambos.

Não é preciso se referenciar em todos estes filmes para entender o que ele quer dizer. São os artifícios a que se refere, os truques dramatúrgicos, a narrativa que precisa de ganchos para avançar. Ele, porém, não prende o espectador desde o início em qualquer um deles, eles vão se revelando à medida que os entrechos se encadeiam. Existem inúmeras variantes dentro do filme: a do filme dentro do filme, a da gênese do argumento e da construção do roteiro, as citações dos melodramas dos anos 40 e 50, os segredos que transbordam sem levar junto quem os guarda, o desdobrar de situações de vários filmes já citados. O espectador irá se situando, recordando-se de outros filmes de Almodóvar e, se assistiu aos que ele referência, as mudanças de acento e entonação das obras dos diretores que lhes caros. Numa delas está Matel, o magnata da construção civil, dublê do produtor de Hollywood Jeremy Prokosch (Jack Palance), que se apropria do filme de Mateo para com ele o chantagear.

Produtores de cinema são
vistos como arrogantes

Ambos são arrogantes, ignoram o filme como arte – Matel mais ainda. E tratam o diretor/artista como nulidade, fora da realidade das trapaças financeiras da atualidade. Inspirado no romance homônimo de Alberto Moravia, o Prokosch de Godard em “O Desprezo”, de 1963, com suas naturais viagens na adaptação, é mais ferino no retrato que ele faz do produtor de cinema. Numa cena antológica, citada frequentemente ao longo dos anos, ele diz preenchendo um cheque nas costas de sua atordoada secretária: “Quando vejo falar em cultura saco logo meu cheque”. Em “Abraços Partidos”, Matel é apenas um amador, alguém vindo de fora, com interesses amorosos, não artísticos ou até mercadológicos. A vingança de Mateo Blanco, ainda que tardia, é retomar o controle de sua criação e remontá-la à sua maneira. Uma aspiração de todo diretor que trabalha na indústria do cinema, seja hollywoodiana ou não. O que importa neste “Abraços Partidos” é o tratamento que Almodóvar lhe dá.

O seu agudo olhar para as atrizes, Penélope Cruz, em particular, menos sensual que no “Vick Christina Barcelona” de Woody Allen, permanece, porém não menos intensa ou, quem sabe, menos glamourosa, uma contradição, pois ele a queria transformada numa estrela dos anos 40 e 50. Porém, ao colocá-la em cenas cruas, despida de qualquer brilho, torna-a um ser de carne e osso. É o que a torna mais atriz e menos estrela. Afinal, o calvário a que ela é obrigada a se entregar não lhe deixa espaço para desfilar sem dor os sofisticados modelos com que Matel a veste para seu desfrute de amante e mecenas. Ele, Almodóvar, a despe dos cacoetes de estrela, pondo-a em sequências sem glamour algum, ao entrar banheiro adentro vomitando na pia, ou em plena fuga de Matel com o amante Mateo, sem maquiagem, o rosto de quem está de mal com o mundo.

Empresário não se mostra
abalado com escândalos

Igual tratamento é dado a José Luís Gómez, que faz o corrupto empreiteiro na terceira idade, com a chama da paixão ainda acesa, em constante atrito com o filho gay, disposto a manter Lena a seu lado à custa da violência, se necessário. Ele faz de seu personagem, Matel, o velhinho capaz de cortejar e chantagear a um só tempo. Em nenhum instante se mostra abalado pelos escândalos que provoca, retrato de um sistema em que a corrupção entranhou-se de tal forma que homens como ele pouco ou nunca reflete sobre isto. Subornar, comprar corações e mentes faz parte de seu metier. Diferente de Mateo, que adota o pseudônimo de Harry Caine para ocultar suas frustrações pela perda de Lena, e procura se adaptar às novas circunstâncias. Esconde o passado de diretor de cinema, Mateo Blanco, e se torna roteirista cego de sucesso.

Algo dentro dele ficou para trás com Lena e entre um trabalho e outro se entrega a relacionamentos fugazes. Até Judite fazer vir à tona o que pensava ter ficado para trás. Então, ele o retoma com vivacidade, espécie de compensação por não ter a amada junto. Pequenos detalhes dos personagens revelados em entrechos distantes do filme dentro do filme – o de Judite com o filho que mantém a acesa antiga paixão por Mateo – sem os choques comuns que as revelações provocam, quando vistas muitas vezes no cinema. O que demonstra o controle de Almodóvar sobre o material que dispõe, retirando dos atores o que quer deles. Desnecessário dizer que ele, como diretor, os integra de tal forma à narrativa que é possível senti-los, mesmo quando parecem improvisar – a brincadeira feita por Matel como Lena, fingindo-se de morto, o de Mateo estruturando o argumento do filme que Diego lhe propõe. O espectador então se vê num cinema feito para os olhos – a composição cromática dos cenários e do vestuário – para a audição – o absorver dos diálogos – e a montagem de pequenos detalhes – a estrada de Lanzarote e os papaventos metálicos.

Almodóvar não entende
o papel da China

Almodóvar apenas se equivoca ao introduzir comentários políticos através da conversa entre Diego e Mateo quando constroem o argumento do roteiro que pretendem escreverem juntos. Diego comenta a “chegada sorrateira” dos chineses à Espanha, sem que ele, Almodóvar, se dê conta do papel jogado pela China no dito mercado global, equilibrando a voracidade do imperialismo estadunidense e, por outras vias, o dos líderes da Comunidade Européia (Alemanha, França e Inglaterra) não só na Europa em si, mas principalmente na Ásia e na África, com menos intensidade na América Latina. Embora ainda esteja se estruturando, seus contornos já podem ser delineados, já é o maior exportador do planeta, e antevistos. E Almodóvar com seus comentários, via Diego, demonstra já o ter sentido, daí sua reação atravessada.

No entanto, são reticências de cineasta num filme de variados percursos com personagens que jogam papel neste grande concerto; notadamente o empresário da construção civil Ernesto Matel, parte da teia do imperialismo espanhol formado, num breve apanhado, pelos sistemas bancário, de telecomunicações, energia, recursos hídricos e de gestão de rodovias. Não é pouco, tendo presença inclusive no Brasil. Com seu breve comentário, Almodóvar mostra para que lado pende. Isto porque, embora muitos vejam o cinema apenas como entretenimento ou, no máximo, como arte destituída de tendências políticas, ele reflete seu tempo, pela via políticoideológica do cineasta.

Inúmeros filmes moldaram o comportamento do público de maneira sutil, a começar pelas aparentemente inocentes comédias classe média feitas por George Stevens (“A Mulher do Dia”), e George Cukor (“A Costela de Adão”), que anteciparam a liberação feminina nos anos 40. Ou as obras abertamente políticas de cineastas militantes ou não: Sergei Eisenstein (”A Greve”, “Encouraçado Potemkin”), Jean-Luc Godard (“A Chinesa”, “Tudo Vai Bem”), Glauber Rocha (“Terra em Transe”, “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”), Bernardo Bertolucci (“1900”, “Antes da Revolução”), Gillo Pontecorvo (“A Batalha da Argélia”, “Queimada”), Tomás Gutiérrez Aléa (“Memórias do Subdesenvolvimento”), Ken Loach (“Terra e Liberdade”, “Meu Nome é Joe”), em brevíssimo apanhado, que discutem os impasses da época em que foram produzidas e exibidas. E trouxeram importantes contribuições para se entender e construir alternativas político-ideológicas ao imperialismo estadunidense.

Filme é permeado
pela ótica católica

Almodóvar se não faz filmes abertamente políticos, restringindo-se aos dramas familiares e às relações amorosas, acabou introduzindo em “Abraços Partidos”, pelas vias transversas, uma preocupação com o mapa geopolítico que está se desenhando nesta primeira década deste Terceiro Milênio. Não embota o todo da construção deste filme, dotado de um olhar particular para as mazelas do mundo da alta burguesia e da classe média espanhola, vistas sob o ângulo do filme dentro do filme. E permeado pela ótica católica da culpa e da purgação do pecado. Reflexo do Catolicismo na cultura espanhola que o faz dotar suas obras de subtextos, como ocorre com as de Buñuel (“Veridiana”, “Nazarin”), que atestam sua permanência. Não é outro o caso de Judite, sofrendo por anos para só desabafar pela metade, assim mesmo numa conversa em que Mateo se acha já contemplado e não lhe deixa levar adiante o que pretende lhe revelar. Sem dúvida, um belo filme, ainda que marcado pelo mencionado comentário envieazado.

“Abraços Partidos” (“Los Abrazos Rotos”). Drama. Espanha. 2009. 127 minutos. Roteiro/Direção: Pedro Almodóvar. Elenco: Penélope Cruz, Lluís Homar, Ângela Molina, Blanca Portillo,José Luis Gómez, Rubén Ochandiano.

(*) Strauss, Frederic, Conversas com Almodóvar, Zahar, Rio de Janeiro, 2008, págs. 144,145.




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