Ação de despejo
Publicado 22/08/2010 10:28
Como numa romaria, os sitiantes se juntaram no meio do arruado. Na frente, duas dúzias de casas em ruínas, sem moradores; sob as pontas das telhas inclinadas, os marimbondos se amontoavam calmos nos casulos. Na calçada de tijolos nus, a chuva, o sol cavavam sulcos entre as cerâmicas, afundando-as, sorvendo-as. Os sitiantes, com a pouca bagagem e a roupa cinzenta, pouco ou nada se distinguiam do casario arruinado. De partida, não tinham para onde ir; mas com os picuás e a merreca de dinheiro que o administrador lhes dera, criam numa chance de serem reassentados noutra terra.
Nem todos creram na ordem de despejo, porquanto há anos ocupavam sítios da Fazenda Passussanga. Foreiros, pagavam o aluguel das terras uma vez por ano. Mas o fazendeiro, até então sem conseguir empréstimo nos bancos, por fim obtivera dinheiro para seus propósitos de agropecuarista; desde que as terras estivessem limpas, sem moradores.
Nem todos creram, mesmo porque era uma ordem inicial, com prazo para cumprimento. E os foreiros, cambados nos prejuízos, foram ao administrador pagar o foro. O fazendeiro aumentara o preço das terras, de modo a tornar inviável o pagamento.
– Tá aqui o dinheiro, Seu Juvêncio. Eu tô pagando! – dissera o sitiante.
– O preço da terra não é mais esse… É a ordem de Seu Valdemar.
– Não pode! Assim ninguém vai pagar… – Inda que com ameaça na voz, instou-se no rogo.
– O dinheiro que eu trouxe, Seu Juvêncio, era pras tiras de pano dos vestidos de minhas filhas na festa do orago. Mas é o dinheiro que tá no contrato! Eu tô cumprindo a minha parte… O sinhô não acredita!? – A mulher não gritara, mirara os olhos, a pele terrosa do rosto do administrador; viu a terra revirada no enxerto do inhame, mas já viciada com a má intenção do fazendeiro, feito uma necrose.
No trato com o administrador, com Seu Valdemar, Mané Pedra fora o único a alevantar a voz:
– Nóis se arrisca mais do que o sinhô por que nóis não tem poder… Mas se nóis perde tudo, também perde o medo de perder a vida…!
O fazendeiro dera ordem ao administrador para andar armado pelos sítios; sem rifle mas com o cabo do revólver saliente sob a camisa de algodão grosso, da cor do céu, sem afinidades com a lhanura do infinito.
Mané Pedra alevantara a voz com os homens. Os sitiantes cevaram-no com elogios. Narrou, ele, ao sindicato.
– Se nóis perde essa questão, ninguém mais vai acreditar no sindicato – disse o presidente. – Era um negro baixo, troncudo, beiços gordos, voz mansa. Na voz, persuadia-se, persuadia os outros. Tinha em Mané Pedra a esperança de não ser espingardeado no tronco.
Não foi, mas Mané Pedra voltou a discutir com Seu Juvêncio; sapecou-o para frente e para trás, segurando-o com as duas mãos na gola da camisa. Foi o seu erro. O administrador sacou a arma, disparou. A bala se alojou na coxa de Mané Pedra, quase na virilha.
O advogado do sindicato chegou devagar, mas com pressa na feição.
Mané Pedra, no hospital, sequer se queixava de pruridos no ferimento. O advogado tratou de desqualificar a ação de despejo. Temia que, sem os impulsos de Mané Pedra, os sitiantes aceitassem a imposição do acordo com o fazendeiro. Requereu ao juiz a dispensa de provas. O caso, àquela altura, reger-se-ia pelo Estatuto da Terra, e não mais pelo Código Civil.
No fim da audiência, entrou no seu carro e deu carona ao advogado do fazendeiro. Instruído, o administrador espalhou o boato de que o advogado do sindicato recebera gorda propina do fazendeiro. A causa estava perdida…
– Dotô, o sinhô não será mais advogado do sindicato. E eu vou perder a função de presidente – disse-lhe o negro manso.
O advogado contou ao juiz, pediu urgência no julgamento. No dia, centenas de camponeses ocuparam a frente do Fórum de Bom Jardim; crianças descalças, filhos de colo.
A sentença não demorou. Os sitiantes ficaram nas terras.