“Adeus à Noite”: Reflexos de duas gerações

Em meio à trama familiar, cineasta francês André Téchiné discute a posição de duas gerações argelinas sobre o uso da violência contra seus inimigos

Em princípio o tema central deste “Adeus à Noite” brota na cabeça do espectador como o conflito entre duas gerações de argelinos radicadas no norte da França. A começar pela idosa Muriel (Catherine Deneuve) cujas raízes árabes foram amortecidas pela absorção de uma nova cultura e os negócios no campo, onde administra o haras com cavalos de raça e a escola de equitação para crianças e adolescentes. Situação adversa à do neto Alex (Kacey Mottet Klein), envolvido com um grupo de descendentes argelinos muçulmanos, adepto do extremismo do Estado Islâmico (EI). O que torna a relação deles de difícil sustentação, dada à crença dos jovens.

O terceiro vértice desta configuração dramática é a jovem argelina, Lila (Oulaya Amanra), espécie de filha adotiva de Muriel e namorada de Alex. Cuidadora de idosos numa instituição de caridade, ela é firme em seu fervor a Alá e fiel seguidora do também jovem líder local do EI, o argelino Bilal Matip (Sthéphane Bakpor). De poucas palavras e firme em suas posições, ele os orienta sobre as tarefas e posições que o grupo deve adotar. Lila, ao contrário do que se espera dela, como mulher árabe, mostra-se livre e com posições próprias em conversas com as amigas.

Mas é Alex que concentra todas as atenções de Muriel, dada às relações cada mais estreitas entre ele e Bilal. Não lhe falta vigilância e conversas com o amigo e senhorio Joseph (Jacques Notot), devido aos sumiços do neto, quando deveria estar ajudando-a na supervisão das cerejeiras a ocupar grande parte de sua propriedade. Ou mesmo em seu haras, onde dedica parte de seu cotidiano a dar aulas de equitação para as crianças da pequena cidade. Isto mostra que ela prepara Alex para se tornar seu sucessor nos negócios, sem saber que ele está ligado ao EI.

Téchiné transforma seu filme em drama familiar

Há, no entanto, o conflito interior do jovem Alex que emerge em suas aflitivas conversas com Muriel. Principalmente quando ela o pressiona para lhe explicitar suas ligações com o EI e ele prefere pressioná-la a lhe esclarecer as nebulosas razões da morte da mãe, única filha da avó. Eles terminam por se desentender, pois há algo que Muriel não lhe revela. Com estas configurações, André Téchiné (13/03/1943), transforma este “Adeus à Noite” num drama familiar, no qual não faltam as figuras do pai e da mãe para preencherem o vazio e a urgência de eles estarem presentes.

Contudo, Téchiné (A Culpa dos Inocentes, 1987) é um cineasta sofisticado, bem informado, que busca a abordagem correta sem escorregar nos fatos históricos. E além disso trafega de um eixo dramático ao outro sem perder o tema central de sua narrativa. Discute a um só tempo a posição dos imigrantes argelinos, ocorrida antes e pós-Revolução Argelina (01/11/1954/19/03/1962), na qual os franceses foram derrotados. E não deixa escapar o quanto eles se tornaram cidadãos franceses. Numa sequência emblemática para se entender isto, Alex questiona Muriel a razão de ela não retornado uma vez sequer ao seu país e ela silencia.

Este rápido diálogo elucida a diferença entre três gerações de argelinos. E justamente o neto Alex que nasceu na França é o que tende a questionar a posição do Ocidente sobre sua crença em Abul Acacim Maomé Ibne Abdalá Ibne Abdal Mutalabe Ibne Haxim (570/632), fundador da religião muçulmana e do império árabe. E notadamente sua adesão ao Estado Islâmico (EI). Ainda mais prestes a entrar em ação de envergadura que poderia redundar num atentado de grandes proporções, a marcar de vez seu grupo. Mesmo o espectador, sem qualquer cena ou sequência preparatória pode aventar tais possibilidades. Alex não é mais o mesmo.

Alex não deixa escapar nenhum dado sigiloso

Os encontros de Alex, Lila, Bilal e Fouad (Kamel Labroudi) vão nesta direção, sem entrar em detalhes sobre o que realmente farão e quem lhes dará cobertura. Bilal apenas orienta seus liderados e os estimula a rezar e seguir suas orientações. Inexistem preparativos, levantamentos de locais e o tipo de ação que irão desenvolver. Téchiné prefere não ser didático, como o cineasta australiano Anthony Maras, em “Assalto ao Hotel Taj Maral (2018)”. Nenhuma informação sigilosa é comentada ou escapa dos jovens integrantes do grupo, ainda que saibam dos mínimos detalhes.

Mesmo Alex, por mais que seja pressionado pela avó, mantém o segredo nos mínimos detalhes, mesmo quando é punido ferozmente por ela. Travam uma luta construída por Téchiné como algo inevitável para Muriel controlar todas as ações do neto, evitando o pior para ambos, em seu ponto de vista. O espectador vê nesta punição o antecipar do que ela teme, porquanto chega mesmo a dizer que:” Eu sei o que acontece, ele não vai voltar”. Tipo de premonição forçada, ainda que verdadeira em razão do envolvimento de Alex na preparação do ato de grandes proporções.

O espectador então fica intrigado, pois quem acaba se transformando em “mãe coragem” é Muriel, em razão de sua sensibilidade de mulher e avó. Seu tirocínio é provocado pelo temor do que poderia advir das ações do grupo. Daí emerge o suspense, ainda que nada se saiba das maquinações da idosa, interpretada pela enigmática e sempre contida Catherine Deneuve (22/10/1943), como o personagem exige. Seus instantes de fúria e seu modo de interiorizar seus repentes são minimalistas e construções de thriller. Tal é o modo como justifica sua atitude ao impedir que o neto chegue ao local do atentado. E ele se vê encurralado como um cão, a ponto de desforrar em Fouad (Kamel Labrouda), em acertada direção de Téchiné.

Muriel teme o ato extremista do neto

Sem perder a tipificação do tema central deste “Adeus à Noite”, Téchiné desvia sua câmera para o que também estava em jogo. Não apenas a defesa do neto, mas também a sustentação dos negócios sob o controle do que restou da família. São agora apenas dois sobreviventes. Em curtas sequências, vê-se os adolescentes em seus cavalos de raça a treinar equitação. E ainda a preocupação de Muriel com sua plantação de cerejas. É o olhar crítico do cineasta atento não só aos eixos dramáticos, mas para o outro lado da personagem: o medo do ato extremista do neto.

Não se está diante de uma história digestiva com bem estruturadas cenas de suspense. Téchiné quer ir além, fazer o espectador sentir o dilema da avó diante do extremismo de Alex, não o visto de longe, mas dentro de sua própria casa. E ademais por ato de seu único neto. É isto que leva Muriel a agir como se vê ao longo da segunda e terceira parte do filme. Os fios dramáticos do que ocorreu à mãe de Alex e o que o faz detestar o pai não se encaixam mais nas preocupações dos dois personagens, a fazer a narrativa avançar de forma acelerada.

A admirável estruturação dramática de Téchiné e seus co-roteiristas Léa Nysius e Amer Alware está na matização dos ambientes onde transcorre a ação neste “Adeus à Noite”. Deixaram de lado os ambientes urbanos com suas movimentadas ruas, cheias de veículos e pedestres. Dando a entender a carnificina antes mesmo de ela ocorrer, a partir de ambientes fechados, rotas de fugas por telhados ou em veículos em alta velocidade. Um clichê mesmo depois dos ataques em Paris, nas ruas de Londres e no atentado às Torres Gêmeas, em Nova York. Por mais realistas que sejam estes cenários, não passam hoje de repetição barata.

Cenários naturais ditam clima do filme

Em “Adeus à Noite” quem dita o clima e a beleza dos cenários naturais em luxuriantes cores é a própria natureza. Da floresta de intenso verde na primavera de 2015 à vegetação rasteira. Entre elas estão as cocheiras com os cavalos de raça, as casas de andar térreo e a pista de terra para treinamento dos jovens cavaleiros. E mesmo a cidade quando aparece é através de nesgas de portas e só. O que vale aqui são os personagens vivendo situações reais, numa dicotomia entre imigrantes argelinos e um de seus descendentes, cidadão francês, ligado ao EI. E a cocheira quando se torna cenário do embate entre avó e neto se presta a representar uma prisão quando o punido está longe de cometer o crime.

Enfim, o que Téchiné pretende não é pender para um lado ou outro, sim mostrar o quanto as questões familiares podem interferir nos rumos tomados por seus entes queridos. O desfecho de “Adeus à Noite” é emblemático ao expor esta visão em estruturação e belo enquadramento, denso clima, pouca luz e plano aproximado do diretor de fotografia Julien Hirsch. E remete ao film noir das décadas de 40 e 50, seu ápice, flagrando a atitude de Muriel em intervir numa realidade que tentou manter sob controle sem sucesso. Mas encontrou as saídas que fizeram suas intenções se tornarem realidade, mesmo que alguns viram seus planos fracassarem.

Alguma lição pode sair para Alex e seu grupo

Há, portanto, a ideia de Téchiné e de seus co-roteiristas de que as gerações não repetem suas experiências, como ocorreu com Muriel. Ela se adaptou à nova realidade e construiu seu espaço de acordo com o ditado pelo capital e o defende com os mesmos interesses. Seu neto Alex e seus companheiros, por mais radicais que sejam, buscaram outros caminhos. Pode não ser o desejável, dado ao radicalismo com que podiam destruir sem apontar novas formas de construir estruturas econômicas e sociais. A alegria de Muriel ao saber do que ocorreu a Alex e seu grupo não desfaz a construção histórica. Alguma lição para ele e seu grupo pode sair daí.

Adeus à Noite (L´Adieu à la nuit”). Drama. França/Alemanha. 2019. 103 minutos. Ficha Técnica: Trilha sonora: Alexis Rault. Montagem: Albertine Lastera. Fotografia: Julien Hirsch. Roteiro: André Téchiné, Léa Nysius, Amer Alware. Direção: André Téchiné. Elenco: Catherine Deneuve, Kacey Mottet Klein, Oulaya Amanra, Jacques Notot, Stéphane Bak, Kamel Labroudi.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor