“Álbum de Família” Poço de rancor
O acerto de contas de uma família classe média sulista estadunidense é tratado pelo cineasta John Welles num clima de decadência e insanidade
Publicado 09/01/2014 17:03
Há poucas semelhanças entre o clima mórbido, rancoroso e insano das peças “Álbum de Família” (1945) de Nelson Rodrigues e “August: Osage County” (“Agosto: Condado de Osage”) de Tracy Letts. Enquanto o brasileiro traça um perfil da corroída classe média carioca dos anos 40, a estadunidense mostra a decomposição da classe média de seu país. Estas semelhanças, no entanto, se diluem, restando apenas o título homônimo dado pelo exibidor nacional ao filme do cineasta John Welles, baseado na peça de Letts.
Roteirista do filme, ela segue a tradição teatral e literária de seu país, indo de Tennessee Williams, 1911/1983 (“Gata em Teto de Zinco Quente”, 1955) a Carson McCullers, 1917/1967 (“Reflexo Num Olho Dourado”, 1941). De Willians substitui o patriarca decadente pela matriarca Violet (Meryl Streep), às turras com as filhas Bárbara (Júlia Roberts), Ivy (Julianne Nicholson) e Karen (Juliette Lewis). De McCullers lembra homens e mulheres presos às suas idiossincrasias, inércia e sonhos desfeitos. E uma rancorosa memória dos/as companheiros/as e parentes.
Estas características são reforçadas por Welles, em seu filme de estréia, como se a indicar a permanência da insanidade na família estadunidense. Violet é dada a acerto de contas consigo e o companheiro Beverly (Sam Shepard). Mas é às filhas que ela reserva todo seu rancor. Culpa-as por elas não terem atendido às suas expectativas, embora ela e Beverly tenham se esforçado para lhes dar boa educação. Elas, porém, se tornaram pessoas comuns, entregues a vidas insatisfatórias, num país em decadência.
Filhas são iguais à Violet
Elas são reflexos da própria Violet, fato que ela não admite, ainda que seu comportamento o demonstre. Seu casamento com Beverly foi um fracasso, dado a tolerância e o mergulho na bebida, dele, e a intolerância e entrega a remédios, dela. E quando, enfim, ele partiu, ela ficou só como sempre esteve. Uma característica dos personagens e obras de Williams e McCullers
Seu reencontro com a neta Jeane (Abigail Breslin), filha de Bárbara, e o companheiro desta Bill (Ewan McGregor), Karen e seu namorado Steve (Dermont Mulroney) e Ivy que vive com ela faz emergir segredos e mútuos rancores. Mais agravados ainda pela presença do irmão Charles (Chris Cooper), a cunhada Mattie Fay (Margo Martindale) e o filho destes Little Charlie (Benedict Cumberbatch). O que era então para cumprir o ritual durante o funeral de Beverly se torna um pesadelo, com troca de insultos, intrigas, agressões verbais e físicas, palavrões e amargor.
Há pouco espaço para afeto neste “Álbum de Família”, cuja ascensão do casal Beverly/Violet do proletariado à classe média não representa a boa consciência, a busca da sociedade mais justa. Tende, como se vê nas discussões dela com as filhas, ao individualismo do cada um por si, todos contra todos, numa concorrência fratricida. Brilhante a sequência em que Bárbara tenta assumir o controle da família e se vê incapaz de superar a mãe em violência.
Assassinatos são verdadeiros suicídios
Esta catarse familiar de tão brutal chega a ser hilária. Expõem de tal maneira as imposturas e fragilidades dos Weston que contamina inclusive a doce e ingênua Jeane, de 15 anos. É o retrato de uma sociedade, marcada por execuções em série perpetradas por adolescentes e deserdados, como recompensa midiática. De tal forma que em “Álbum de Família” os assassinatos são mais suicídios que execuções em si.
Mesmo em se tratando de adaptação, Welles consegue retirar marcações teatrais e fazer fluir os entrechos sem que a narrativa seja prejudicada pelo contínuo jorro de frases. Mantém sua câmera em frente aos atores e os deixa brilhar. Aproveita inclusive os subtextos, alusões, referências e fios soltos normalmente numa peça para lançar luzes sobre os personagens: Charles caminhando pelo quintal enquanto Mattie Fae e Violet, numa tensa revelação, o observam. Ele é o único a zombar de tudo e a merecer respeito.
Além disso, o filme é dominado pelas mulheres com seus subterfúgios, artimanhas, capacidade de ferir uma à outra, revelando segredos na hora certa. Os homens, Bill e Steve, são fracos, sem voo próprio. Às vezes são brutais, sem sensibilidade ou capacidade de influir ou contribuir para amenizar o indigesto clima. Mesmo Beverly, escritor de sucesso, quando lembrado é mais por seus defeitos. Ele se entregou às dubiedades, impostas por Violet, o que o desgastou e o tornou amargo.
Entretanto, por mais que Letts e Welles desconstruam a capacidade de a mulher superar adversidades, fugindo ao choro e a culpa, elas não choramingam por suas perdas. A racista Violet, mesmo depreciando a luta da índia cheyenne Johaana, ao ver-se sozinha é nela que se apóia. Mas é Karen, a marginalizada, folclórica, a personagem positiva do filme. É a única que entende o beco sem saída dos Weston e se dispõe lutar pelo que anseia.
“Álbum de Família”. (“August: Osage County”). EUA. Drama. 2013.121 minutos. Música: Gustavo Santaolalla. Montagem: Stephen Mirrione. Fotografia: Adriano Goldman. Roteiro: Tracy Letts, baseado em sua peça “August: Osage County”, prêmios Pulitzer e Tony. Direção: John Welles. Elenco: Meryl Streep, Julia Roberts, Juliete Lewis, Julianne Nicholson, Abigail Breslin, Chris Cooper, Ewan McGregor.