“Além das Montanhas”: Retrato da Ignorância

Filme do cineasta romeno Cristian Mungiu usa caso real da paixão de uma jovem por uma freira para expor as fragilidades da Igreja Ortodoxa em seu país

Um filme deve ser mais que um filme, confirma o cineasta romeno Cristian Mungiu (“4 meses, 3 semanas, 2 dias”). Seu “Além das Montanhas” ajuda a compreender os impasses da Igreja Cristã Ortodoxa, e não só dela, num momento de transição político-ideológica de seu país. Mungiu baseia-se nos romances da escritora Tatiana Niculeslu Bran, para desmistificar os dogmas desta Igreja, na Romênia, pós-socialista. E termina por confirmar a perda de autoridade de um poder milenar.

É a autoridade do Padre (Valeriu Andriuta) e da própria Igreja Cristã Ortodoxa que é exposta ao extremo ao longo de 151 minutos. Mugiu encadeia os entrechos com uma clareza exemplar. O espectador sabe, desde o início, de que se trata o filme. A começar pela apresentação das personagens Alina Righs (Cristina Flutur) e Voichita (Cosmina Stratan). Duas garotas criadas num internato que seguiram vidas opostas, desejam agora viver juntas. Um caso mais do que atual.

A relação amorosa entre elas envolve desejo, carências e fragilidades, num fechado universo religioso, com seus dogmas. A exemplo do francês Jacques Rivette, em “A Religiosa” (1966), e do polonês Jerzy Kawalerowicz, em “Madre Joana dos Anjos” (1961), que usavam o desejo para explicitar a repressão por elas sofrida, Mugiu vai além, atesta o arcaísmo da Igreja no Terceiro Milênio. Através da dialética-narrativa expõe a contradição entre as contestações de Alina e o exorcismo, beirando a irracionalidade, a que o Padre a submete.

Desejo é visto como doença pela Igreja

O comportamento obsessivo de Alina, diante das evasivas de Voichita, seu objeto de desejo, vai num crescendo, sem que o Padre, a Madre Domnica (Dana Tapalaga) e até o psiquiatra Solovastro que a interna identifiquem suas razões. O motivo principal lhes escapa, por não se tratar, na verdade, de possessão demoníaca ou sofrimento psíquico. Ambos mostram-se, assim, despreparados para aceitar sua paixão não correspondida pela heterossexual Voichita. Ainda mais o Padre, que se vale da Oração de São Basílio para praticar o exorcismo.

Além disso, a relação entre Alina e Voichita sofre a influência do universo em que vivem. É o mundo fechado do monastério, cuja relação entre freiras se dá longe das contradições sociais. É voltado para si, com regras e escalas próprias. A hierarquia é impositiva, inexiste contestação ao que o Padre fala. Inclusive a crença de que tenha poderes divinos. A Madre e as freiras o veem como um santo, e o chamam de Pai. Quando Alina entra em choque com ele, opondo-se à sua autoridade, é como se Lutero tivesse se reencarnado para contestar a “infalibilidade” do Papa.

A maneira como sua autoridade vai erodindo, não pelas ações de Alina, mas pelo arcaísmo de seu método, confirma a necessidade de mudanças nos dogmas e preceitos da Igreja Cristã Ortodoxa. O Padre, no entanto, vai reforçando seus métodos à medida que eles se mostram frágeis, inoperantes. A ponto de usar a violência, a tortura, em nome da fé, para submeter aos que, desconfia, estejam “possuídos pelo demônio”. Nenhuma freira ou a própria Madre Domnica o contesta, nem atentam para o sofrimento da, àquela altura, agonizante Alina. Reich, sem dúvida, os livraria do erro.

Voichita sente-se culpada por omissão

O medievalismo fica patente quando a suposta cura da possessão se transforma nos maltratos da inquisição. Não o ferro em brasa ou as grades, mas as correntes amarradas aos pulsos e tornozelos de Alina em pleno Século 21. Não à toa a Igreja Cristã Ortodoxa é denunciada por Mungiu e Bran, mas também a Católica, cuja crise foi exposta pela renúncia do Papa Bento XVI. Não é, portanto, a fé que está em risco, mas a Igreja-Estado, a religião organizada, que sofre debacle idêntico ao capitalismo, pós-queda do neoliberalismo. Por ter-se atrelado ao capital, à burguesia, sofre idênticas fragilidades por afastar-se das camadas oprimidas.

Voichita, embora saiba dos motivos da insurgência de Alina, não só identifica-se com a Igreja, como também não vê saída longe dela. A sociedade romena não lhe dá segurança. Mas, a exemplo do Padre, está cheia de culpa. Bastava uma palavra sua para todo o ritual de esboroar. Falha, portanto, por omissão e subserviência. Mungiu consegue, assim, denunciar os que se valem da omissão para sobreviver. A palavra do delegado, ao desmistificar os dons infalíveis do Padre, consegue, enfim, trazê-la para a realidade. É tarde.

Mungiu com sua narrativa cheia de elipses e estética que prima pelos tons sombrios, usa a ciência para contestar o direito de o Padre usar o exorcismo para expulsar o “demônio”, que, na verdade, é sua ignorância. A maneira como a médica trata-o e às freiras, sem meias palavras, na UTI, é uma condenação aos seus métodos e a urgência de abandoná-los. “Olha o que vocês fizeram. E agora!?”. É como se ela perguntasse: esta é a autoridade a que devemos nos submeter? Boa pergunta.

“Além das Montanhas”. (“Dupa Dealuri”). Drama. Romênia/França/Bélgica. 2012. 151 minutos. Fotografia: Oleg Mutu. Roteiro: Cristian Mungiu, baseado nos romances de não-ficção de Tatiana Niculeslu Bran. Direção: Cristian Mungiu. Elenco: Cosmina Stratan, Cristina Flutur, Valeriu Andriuta, Dana Tapalaga.

(*) Festival de Cannes 2012: Prêmios de Roteiro e atriz (Cosmina Stratan e Cristina Futur).

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