“Amantes Constantes”: Apenas Revoltados

Filme do diretor francês Philippe Garrel discute as conseqüências das barricadas de Maio de 68, em Paris, através do comportamento de um grupo de jovens pequenos burgueses

Esperado como um dos melhores filmes do ano, “Amantes Constantes”, do francês Philippe Garrel, criou a expectativa de ser uma obra excepcional, dessas que há muito não se via no cinema. Mais de uma publicação o anunciou assim: obra-prima. Com uma avaliação dessas, o espectador entra no cinema com a sensação de que assistirá a algo fora do comum. Principalmente porque o tema, a Revolução de Maio de 1968, na França, o credenciava a isso. Muito radicalismo, ousadia e abertura de vários caminhos e tendências políticas e sociais, que desembocaram na contracultura, liberação da mulher, movimento pelas liberdades civis e, por que não, na resistência urbana ao capitalismo na Alemanha e na Itália. Munição suficiente para levar à reflexão nestes tempos neoliberais, de supremacia e poder ditatorial dos EUA mundo afora. Mas o filme satisfaz a esta expectativa? Aí é que começam os problemas.


 


Não há como não contrapor sua obra ao filme “Os Sonhadores”, de Bernardo Bertolucci, que analisa a revolução sexual e comportamental da juventude durante as barricadas de maio de 68, em Paris. Embora produzidos em 2004, sua criação chega ao Brasil dois anos depois, quando os reflexos do filme de Bertolucci ainda se fazem sentir. A coincidência de temas não se limita à data: maio de 1968 -estende-se à caracterização de classe: ambos centram sua narrativa em segmentos desligados da classe operária. Os jovens, em ambos os filmes, são da pequena burguesia. Participam das barricadas não com o fervor revolucionário que o movimento histórico exigia, sob o comando partidário, mas como simples insurgentes.


 


Anarquistas se perdem em discussões estéreis


 


Em “Amantes Constantes”, eles são declaradamente anarquistas, enquanto que em “Os Sonhadores”, não chegam nem a se definir claramente. Passam a maior parte do tempo às voltas com descobertas sexuais, num triângulo amoroso que inverte papéis e a câmera de Bertolucci trata seus corpos com uma intimidade pouco vista no cinema. É ousado, pois se trata de desvendar comportamento e apontar limites não só dos jovens, mas também de uma época. Evolui para um desfecho que chega às barricadas com o lançamento de coquetel molotov à barreira de policiais postados diante da barricada. É como se Bertolucci nos dissesse: depois de ultrapassarem os limites do amor e do sexo, os três jovens (dois rapazes e uma moça) se lançaram às barricadas. É como se ele, Bertolucci, tomasse uma posição, conseqüente e insurgente.


 


Nada disso ocorre em “Amantes Constantes”. Garrel toma o caminho oposto. Começa por não adotar a estética do technicolor. Seu filme, em preto e branco, captado pela bela fotografia do veterano William Lubtchansky, é cheio de sombras e figuras não definidas, como se tratasse de um filme noir. Os personagens se movem entre fumaça, paralelepípedos, chamas e veículos tombados, diante de um cordão de policiais armados com cassetetes e bombas de efeito moral. Não há como diferenciá-los. François (Louis Garrel, filme do diretor e ator do filme de Bertolucci), o jovem-símbolo de sua epopéia, sintetiza sua revolta, mais contra a estrutura militar-repressiva do que contra a situação político-social francesa vivida no momento. Não é diferente a reunião de que ele participa com Antoine, o burguês que a todos sustenta: estão ali para lutar contra o poder, não para tomar o poder. E se definem anarquistas. Daí partem para as barricadas.


 


Grupo não põe o poder em cheque


 


As seqüências que se seguem, das mais belas do cinema nos últimos tempos, mostra-os envolvidos numa luta que não tem objetivo, senão incendiar, opor-se aos policiais, sem propriamente evoluir para uma situação-limite em que o poder é posto em cheque. François, no fecho desta primeira parte, escapa à perseguição policial, numa correria eletrizante por ruas estreitas e depois pelo telhado dos prédios. Num diálogo esclarecedor sobre as conseqüências de sua ação, ele busca ajuda de uma dos moradores e este o indaga: “Você ajudou a queimar nossos carros?” “Sim”, responde, ingenuamente. “Então, não posso te ajudar”, retruca o outro. Ele fica num beco-sem-saída, tendo de evadir-se pelo telhado para não ser pego pela polícia.


 


Se esta primeira parte elucida quem eram os participantes das barricadas, do ponto de vista de Garrel, o que vem a seguir joga o espectador em seqüências intermináveis de indecisão, haxixe, comentários desencontrados sobre o futuro e a dependência do grupo das iniciativas do burguês Antoine. Demonstra, assim, a falta de rumo, de projeto e ambição de poder dos jovens pequeno-burgueses que se uniram ao burguês Antoine, que os abastece de haxixe, coloca seu amplo apartamento à sua disposição e os deixa participar de namoros e troca de casais sob seu teto. Dois quartos do filme se consomem nesta mesmice, tediosa maneira de Garrel expor seu ponto de vista de que os “heróis das barricadas” não tinham objetivo político. Quando muito poderiam, como o faz François, ouvir as querelas do avô sobre a necessidade de contenção para se viver mais de cem anos.


 


Definição do futuro não é pela luta


 


Bastariam cerca de vinte minutos ou menos para Garrel expor as inconseqüências do grupo de jovens pequeno-burgueses e partir para a quarta e última parte de seu filme. Nesta, sua análise é mais contundente e esclarecedora, por mais que não se aceite, depois das barricadas eles, os jovens, teriam de definir seu futuro, porquanto não pretendiam mesmo lutar pelo poder. Há, nesta parte, o dilema comum aos jovens de todas as épocas, o que fazer para que o futuro lhes seja benéfico. François conhece Lilie (Clotilde Hesme) e por ela se apaixona. Ele, jovem poeta, perambula pelo apartamento de Antoine enquanto ela, aprendiz de escultura, posa para um escultor famoso, que lhe faz a corte. O amor entre os dois jovens tem uma ameaça: a realidade cruel e implacável, que exige tomada de posição.


 


François, poeta iniciante, nada tem a oferecer a Lilie, salvo seu amor e sua fidelidade. Ela, pelo contrário, entre juras de amor, deixa-se seduzir pelo canto do futuro nos EUA, onde poderá concluir seus estudos e se iniciar no mercado da arte, como lhe assegura seu sedutor. Garrel toma posição, de novo pela realidade, de acordo com seu ponto de vista, e afirma que os jovens das barricadas não passavam de românticos. O desfecho de seu filme deixa isto claro, pela posição que adota frente a François. Por mais que se conteste sua opção, toda revolta contra o sistema tem muito de romântico, senão seria difícil alcançar os objetivos almejados. Os jovens de “Amantes Constantes” não têm consciência de que há uma classe oprimida à qual devem se unir para chegarem ao poder. São apenas contestadores, sem rumo e sem perspectiva.


 


Variedade da luta não aparece na tela


 


Garrel, para contrabalançar sua visão, mesmo que sutilmente, introduz em algumas seqüências um dos jovens que, depois das barricadas, chega em casa e diz para a mãe que era preciso fazer a revolução para a classe operária, mesmo que esta não o quisesse. São rápidos instantes em que a discussão aflora para logo cair no vazio. Não se sabe dos impasses e das intermináveis discussões mantidas pelos comandos estudantis com os sindicatos operários, os partidos políticos e os intelectuais franceses para se montar uma frente e levar a revolução adiante. Incompreensões de parte a parte impediram a radicalização conseqüente do movimento e este, embora tenha provocado mudanças no Governo de De Gaulle, inclusive sua própria renúncia, não atingiu seus objetivos. Garrel não entra nestas questões, preferindo centrar sua discussão na incapacidade dos jovens pequeno-burgueses de ser conseqüentes em seus propósitos, que, aliás, não foram sequer elaborados durante suas rápidas assembléias.


 


A saída para eles foi buscar outras soluções menos conflituosas e apegadas ao alcance de suas idéias: emigrar para o Marrocos, onde poderiam continuar suas vidas, regadas, como dizem, a haxixe. Disto serviram as barrigadas para eles, talvez como forma de afirmação juvenil e menos como perspectiva de futuro. Esperava, pela expectativa que criou com “Amantes Constantes”, que Garrel  fosse além, mostrasse que havia idéias em profusão, mais que anarquistas. O Maio de 68 é o tempo da Revolução Chinesa e do “Livro Vermelho”, de Mao; época da mini-saia, dos hippies, do movimento por liberdades civis, das passeatas contra a Guerra do Vietnã, do Women Lib, das lutas contra as ditaduras no Terceiro Mundo, para ficar só em algumas vertentes.


 


São mudanças em profusão não sintetizadas em nenhum personagem, nem no homossexual em pânico, Gualtier, que perambula pelo apartamento resmungando, sem ter com quem dialogar, até tomar uma das atitudes emblemáticas do filme. Apenas as jovens ousam falar de suas preferências e atrações pelo sexo oposto, sem que Garrel aprofunde esta opção, ficando nas elipses e indicações do que elas fizeram, através de diálogos depreciativos sobre a potência sexual de seus parceiros. Ele parece se deleitar com as imagens de Antoine e seus amigos em volta da fumaça e do narguilé (apetrechos usados para consumo do haxixe), denunciando-os como se disse: “eles gostavam é disso”. Não deixa de ser sarcástico e histriônico, ao um só tempo; sintomático de uma classe que se deixa levar pelo prazer, já que sua situação de vida e de poder está resolvida.


 


Filme de Bertolucci é mais esclarecedor


 


Bertolucci, em “Os Sonhadores”, mostra-se com menos pretensão do que Garrel, e termina por ser mais esclarecedor, porquanto não aborde os meandros político-sociais que levaram ao Maio de 68, em Paris. Nenhum dos dois tem, por mais que se queira, a contundência e a ousadia de “A Chinesa”, de Goddard, dirigido em plena efervescência dos anos 60. Um cinema de idéias, que se apóia na estética do preto e branco para atestar os tempos sombrios em que se vivia, não pode escapar às visões de mundo da época. Se os jovens pequenos burgueses após as barricadas não voltaram a elas, pelo contrário, ficaram temerosos da repressão apenas, é porque suas convicções não iam além de uma irritação com o status quo, representado por seus próprios pais, e muito menos contra a superestrutura da qual dependiam para financiar seu haxixe, vindo da Ásia. Seria necessária muita consciência ideológica para avançarem para a aliança com o proletariado, como quer um deles, e então irem para o outro lado da barricada onde estava, de fato, o poder.


 


Não bastassem estes senões, “Amantes Constantes”, pelo menos para os brasileiros, tem um problema a mais: as legendas, sobrepostas aos ambientes e personagens, terminam por não ser vistas nem lidas. Transforma o filme numa daquelas obras a que se assistia nos antigos cineclubes sem legendas, entendendo-se o filme mais pelo contexto do que pelos diálogos. De certo, nenhuma compreensão maior trará para o filme de Garrel, que vendido como uma obra-prima não chega a incomodar. Suas três horas de duração terminam por entediar e confirmar a necessidade de um filme que veja o Maio de 68 com os olhos da contradição e da necessidade de mudança que ainda perdura.


 


Amantes Constantes” (Les Amants réguliers). França, 2004, 2h58 minutos. Drama. Direção: Philippe Garrel. Elenco: Louis Garrel, Clotilde Hesme e Eric Rulliat.Prêmios: Direção e Fotografia no Festival de Veneza de 2005.
            

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor