Aniversário do poeta Manuel Bandeira – a Evocação do Recife

O poema foi escrito em 1925 a pedido do sociólogo e escritor Gilberto Freyre que, à época, estava incumbido de editar livro comemorativo dos 100 anos do jornal Diário de Pernambuco

O poeta Manuel Bandeira

Manuel Bandeira nasceu no Recife em 19 de abril de 1886. Grande poeta, ao que sempre respondia “grande é Dante”, ele é, sem dúvida, grande e um dos maiores da literatura de língua portuguesa. Ou melhor, da língua brasileira, tamanha é a sua apropriação da fala do Brasil.

Eu não sabia bem o que escrever de novo sobre o aniversário de Manuel Bandeira. Então me ocorreu – descobri, talvez –  que o seu eterno poema Evocação do Recife é uma síntese de gênio do amor e da memória da cidade. Ele reúne em si o que se escreveu de poesia sobre o Recife, tanto em versos de poetas, quanto em poesia de prosadores, para lembrar Baudelaire dos Pequenos Poemas em Prosa. Mas antes, uma rápida exposição de como surgiu o poema-síntese da memória amorosa do Recife

Essa ternura em versos foi resultado de uma encomenda ao poeta.  É raro ver uma encomenda transformada em produto tão belo. O poema foi escrito em 1925 a pedido do sociólogo e escritor Gilberto Freyre que, à época, estava incumbido de editar livro comemorativo dos 100 anos do jornal Diário de Pernambuco. Gilberto Freyre encomendou, sem nem imaginar o que viria, um poema sobre “o Recife da meninice do poeta”. Na ocasião, Manuel Bandeira achou a coisa um tanto impertinente, pois se tratava de poema encomendado, com temática e abordagem definida – o que não costumava fazer. Mas aceitou a intromissão, para nossa maior felicidade.

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Gilberto Freyre sabia a quem pedir. Ele conhecia o fascínio do poeta pelo mundo fundamental da cidade. E escreveu:

“Também o poeta quis ver o sobrado amarelo que foi do avô e está ainda de pé, com a escada rangendo de velha. Quis ver a rua da União. Quis ver a rua da Saudade. A do Sol. A da Aurora […]. Vimos juntos alguns destes lugares, que se amanhã desaparecerem do mapa do Recife – cidade que há cinco anos serve de brinquedo a amadores de urbanismo para suas experiências gostosas de derrubar casas e igrejas velhas”. E concluiu depois: casas e igrejas velhas “ficarão para sempre, enquanto houver literatura brasileira, no poema de Manuel Bandeira. É o que a geografia lírica do Brasil tem de maior… é um dos maiores poemas escritos na nossa língua”. 

O poeta maior no livro “Itinerário de Pasárgada”, que deveria ser lido por todos amantes de poesia e poetas do Brasil, escreve:

“Dos seis aos dez anos, nesses quatro anos de residência no Recife, com pequenos veraneios nos arredores — Monteiro, Sertãozinho de Caxangá, Boa Viagem, Usina do Cabo —, construiu-se a minha mitologia, e digo mitologia porque os seus tipos, um Totônio Rodrigues, uma D. Aninha Viegas, a preta Tomásia, velha cozinheira da casa de meu avô Costa Ribeiro, têm para mim a mesma consistência heróica das personagens dos poemas homéricos. A Rua da União, com os quatro quarteirões adjacentes limitados pelas ruas da Aurora, da Saudade, Formosa e Princesa Isabel, foi a minha Troada; a casa de meu avô, a capital desse país fabuloso.

Quando comparo esses quatro anos de minha meninice a quaisquer outros quatro anos de minha vida de adulto, fico espantado do vazio destes últimos em cotejo com a densidade daquela quadra distante”

E para o imortal poema “Evocação do Recife”, Manuel Bandeira se refere aqui:

Na ‘Evocação do Recife’ as duas formas ‘Capiberibe — Capibaribe’ têm dois motivos. O primeiro foi um episódio que se passou comigo na classe de Geografia do Colégio Pedro II. Era nosso professor o próprio diretor do Colégio — José Veríssimo. Ótimo professor, diga-se de passagem, pois sempre nos ensinava em cima do mapa e de vara em punho. Certo dia perguntou à classe: ‘Qual é o maior rio de Pernambuco?’. Não quis eu que ninguém se me antecipasse na resposta e gritei imediatamente do fundo da sala: ‘Capibaribe!’ Capibaribe com a, como sempre tinha ouvido dizer no Recife. Fiquei perplexo quando Veríssimo comentou, para grande divertimento da turma: ‘Bem se vê que o senhor é um pernambucano!’ (pronunciou ‘pernambucano’ abrindo bem o e) e corrigiu: ‘Capiberibe’. Meti a viola no saco, mas na ‘Evocação do Recife’ me desforrei do professor, intenção que ficaria para sempre desconhecida se eu não a revelasse aqui. Todavia, outra intenção pus na repetição. Intenção musical: Capiberibe a primeira vez com e, a segunda com a, me dava a impressão de um acidente, como se a palavra fosse uma frase melódica dita da segunda vez com bemol na terceira nota”.

Nesta altura, vejo 1925, o ano em que o poema foi publicado, e tenho que fazer uma breve pausa. Fechem os olhos por favor para a violentação da poesia ao citar só estes versos da Evocação do Recife: 

“…A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife…
Rua da União…
A casa de meu avô…
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife…
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô”

Observem: se não olharmos o ano da publicação, recebemos no espírito a impressão de que o poeta era um homem idoso, muito idoso, quando escolheu as lembranças magníficas acima.  No entanto, nascido em 1886, em 1925 ele só possuía 39 anos de idade!  Impressiona a gente. Mas acontece com Manuel Bandeira o que vemos em todo grande escritor: os escritos sobre o passado deixam a sensação de que escrevem depois dos 60 ou 70 anos. Assim ocorre com Marcel Proust, quando lemos Em Busca do Tempo Perdido, e pelo título, sentimos colagens da memória de um homem muito idoso. Mas o romance começou a ser escrito quando o autor estava com 37 anos de idade. Olhem só o estranho feitiço da realização literária.

O mesmo acontece com Antônio Maria em muitas crônicas. Para um leitor sem aviso, ele escreveu como um homem da idade de mais de 70 anos sobre o Recife da sua infância e juventude. No entanto, desde os 32, 33 anos, Antônio Maria parece bem mais velho ao leitor. Observem esta obra-prima da sua poesia aos 42 anos de idade: 

“Se fosse possível descrever, em palavras, a introdução, ao menos a introdução, da marcha do Clube das Pás! Mas é possível dar uma ideia do que se passava por dentro de mim, que me sentia, inopinadamente, órfão e livre, desapegado de tudo e de todos. Eu era mais que um guerreiro. Era o vento. Cada homem e cada mulher eram uma parte daquele furacão libertário. Todos se emancipavam (eu digo por mim) e se tornavam magnificamente dissolutos… porque o clarim estava tocando, porque os estandartes se equilibravam no espaço, porque o mundo, naquele exato e breve momento era, afinal, de todos.

Tudo deve ter mudado. O Carnaval do Recife talvez não seja, hoje, um desabafo. Talvez não contenha aquele desafio de homens e mulheres, livres de todas as sujeições e esquecidos de Deus. É possível que se tenha transformado numa festa, simplesmente. Talvez seja alegre, e isto é sadio. Mas os meus carnavais eram revoltados. Não tenho a menor dúvida de que aquilo que fazia a beleza do Carnaval pernambucano era revolta -revolta e amor – porque só de amor, por amor, se cometem os gestos de rebeldia.

Muitas vezes, de madrugada, o menino acordava com o clarim e as vozes de um bloco. Eles estavam voltando. O canto que eles entoavam se chamava ‘de regresso’. Não sei de lembrança que me comova tão profundamente. Não sei de vontade igual a esta que estou sentindo, de ser o menino que acordava de madrugada, com as vozes dos metais e as vozes humanas daquele Carnaval liricamente subversivo.

Meu quarto era de telha-vã. Minhas calças, brancas. Meus sapatos, de tênis. Meu coração, inquieto. E nada tinha sido ainda explicado”.

O Recife na bela prosa-poesia de Clarice Lispector:

“E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu….

Eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz. E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim”.

Ou o Recife social e único com João Cabral de Melo Neto. O Rio Capibaribe de Bandeira, mas tão diferente, ainda assim é memória e presente permanente:

Em entrevista a um jornal carioca, em 1985, quando lançou Agrestes, João Cabral de Melo Neto fez uma forte declaração: “Vivo dentro do Recife”. No poema De volta a Pernambuco, escreve:

“Todas (as cidades) lembravam o Recife,
este em todas se situa”.

O Recife de Joaquim Cardozo:

“Recife romântico dos crepúsculos das pontes,
Dos longos crepúsculos que assistiram à passagem dos fidalgos
[holandeses,
Que assistem agora ao movimento das ruas tumultuosas,
Que assistirão mais tarde à passagem dos aviões para as costas
[do Pacífico;
Recife romântico dos crepúsculos das pontes
E da beleza católica do rio.”

E o Recife de Carlos Pena Filho:

“Hoje, serena, flutua,
metade roubada ao mar,
metade à imaginação,
pois é do sonho dos homens
que uma cidade se inventa…

Ah, mas se a gente pudesse
fazer o que tem vontade:
espiar o banho de uma,
a outra, amar pela metade
e daquela que é mais linda
quebrar a rija vaidade.
Mas como a gente não pode
fazer o que tem vontade,
o jeito é mudar a vida
num diabólico festim.
Por isto no Bar Savoy,
o refrão é sempre assim:
são trinta copos de chope,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados”.

Agora, podemos ler, reler, sentir de novo, mais uma vez e sempre o poema-síntese da memória afetiva de todos os poetas da cidade: 

“Evocação do Recife

Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritssatd dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois —
Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância

A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da casa de Dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincené na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, mexericos, namoros, risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:

Coelho sai!
Não sai!

A distância as vozes macias das meninas politonavam:

Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão
(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão…)

De repente
nos longes da noite
um sino

Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era São José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva se ser menino porque não podia ir ver o fogo

Rua da União…
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade…
… onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora…
… onde se ia pescar escondido
Capiberibe
— Capibaribe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento

Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redomoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras

Novenas
Cavalhadas

Eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus cabelos

Capiberibe
— Capibaribe

Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo…
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife…
Rua da União…
A casa de meu avô…
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife…
Meu avó morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô”

Na voz do poeta aqui

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