“Anjos do Sol”: Vítimas do sistema

Em seu filme de estréia, o cineasta Rudi Lagemann divide-se em denunciar a exploração sexual infantil no país e em optar pela aventura na selva

Uma das maiores dificuldades do cinema é produzir um filme com novos códigos, novas linguagens, novas simbologias e novos conteúdos. Sempre sobra uma referência aqui outra ali e, na maioria das vezes, a dramaturgia não escapa a clichês ou a citações de obras hollywoodianas. Impossível deixar de ver estas referências em “Anjos do Sol”, filme de estréia do cineasta Rudi Lagemann. Primeiro na abordagem de um tema caro ao cinema nacional que é a exploração de crianças, depois na referência a clássicos hollywoodianos sobre a brutalidade na prisão. Um tema que renderia um filme sobre a prostituição infantil se transforma numa obra de ação, com cenas de fuga em plena selva. O que tira parte de seu impacto e a coloca noutra perspectiva: o que deveria ser uma denúncia se transforma numa luta pela liberdade, como na maioria deste tipo de obra.



                


Nada demais quando as referências e as citações não fogem ao contexto do que se pretende. A questão é que com um tema forte como o da prostituição infantil, acrescentar uma narrativa de ação pode, desde o início, levar o espectador a indagar: quando é que Maria (Fernanda Carvalho) irá escapar da Casa Vermelha, onde foi trancafiada com outras garotas? Esta perspectiva está colocada desde o princípio, quando ela e Inês (Bianca Comparato) desembarcam em Socorro, lugarejo construído para abrigar os garimpeiros isolados no meio da selva amazônica. E se cumpre, quando ela tenta, realmente, evadir-se da “prisão” e ganhar a mata fechada para, enfim, conquistar a liberdade. Então, “Anjos do Sol”, cuja propaganda diz que é um filme sobre a exploração da prostituição infantil no Brasil se transforma num filme sobre a conquista da liberdade, depois dos horrores do bordel/prisão.


 


               


Criança vira fonte de lucro em bordel


 


               
Esta liberdade, centrada na busca de solução para sua própria vida, é posta a partir do momento em que Maria é vendida pela família paupérrima para uma “atravessadora de menores” a soldo da elite do sertão nordestino. Estão presentes, no leilão que ela monta para vender as meninas, do político que arremata a mais nova delas ao “coronel” Lourenço (Otávio Augusto) que compra Maria e leva Inês de presente. É neste instante que começa o calvário de ambas, com a “vantagem” de Inês saber o que lhe espera, enquanto Maria, além de inocente, carrega a ignorância não só da idade como do meio em que vivia. Nada sobre o mundo lhe foi dito, pois a vida que levava, a ponto de ser vendida pela família, era mais uma forma de punição do que uma fonte de conhecimento dos males gerados pelo mundo que a cerca. Sua condição de lumpemproletariado não a fazia avistar horizontes para além da miséria, do analfabetismo e da fome.


 


               
Assim é que, ela, Maria vai aprender que, para além da miséria, existem o sofrimento do corpo e sua condição de mulher, fonte de prazer para o burguês Lourenço e seu filho e lucros para o sádico Saraiva (Antônio Calloni). Nada de sua condição de gênero, de mulher, lhe tinha sido apresentado até então. É Inês, com seu ar enojado e petulante, que irá lhe abrir as portas da experiência forçada entre um gole e outro de cachaça para não sentir a dor do estupro que ambas iriam sofrer. Enquanto Inês usa artimanhas para escapar à brutalidade, ela, Maria se vê diante da relação a seco, com dor e sangue. Não bastasse isto, elas são colocadas na ciranda da prostituição no garimpo de Socorro, para gerar dividendos para o burguês, Lourenço, e seu sócio Saraiva. Este primeiro ato de “Anjos do Sol” é, assim, impactante. Lagemann não poupa o espectador de um tema presente em seu cotidiano através da mídia. Tudo a que ele se acostumou a ver no horário-nobre chega-lhe agora por meio de uma história quase documental.


 


             
               
Miséria leva pais a vender as filhas
               
               


Percebe-se, neste primeiro ato, o quanto há de feudal, violento, injusto e atrasado no Brasil, principalmente em suas regiões mais subdesenvolvidas. Ali as relações sociais ainda são patriarcais, com total dependência de favores e subserviência aos latifundiários e novos coronéis como Lourenço. O direito de o proletariado usar sua força de trabalho da forma que melhor atenda a seus interesses, ainda não chegou a sua consciência. A ponto de seus próprios filhos virarem mercadoria. Não por ser um produto em si, mas por ele não suportar a situação de penúria em que vivem. A venda de suas filhas assemelha-se, assim, a se livrar de um peso, uma boca a menos para sustentar e uma forma de arranjar dinheiro para tocar a vida adiante. A culpa, então, recai sobre a estrutura social que cria situações iguais a estas. Desta forma,o filme revela que algo de podre emerge da estrutura burguesa brasileira quando se abrem as comportas carcomidas de seu poder.



            


Estamos, neste primeiro ato, em um filme impar. Porém, a linguagem usada por Lagemann revela-se conservadora. Mas, no entanto, serve ao tema e permite que as cenas fluam de forma clara, sem retoques ou maneirismos tão ao gosto de cineastas em suas primeiras obras. Mas, se este primeiro ato, repita-se, é impactante, a partir daí entra-se em outro filme. O frescor começa a desaparecer e fica-se diante de um tipo de cinema a que nos acostumamos. Maria e Inês, por ordem do coronel Lourenço, são enviadas ao garimpo no meio da selva amazônica, para serem entregues, literalmente, às feras. Vão servir de “carne fresca” para sedentos garimpeiros. E logo o espectador é apresentado à galeria de personagens desse tipo de filme. Estão ali o brutal proprietário do bordel/prisão, seus capangas, seus clientes e as garotas, menores de idade, que lhes servem de petisco e prato principal.



             
             
Boite vira fast-food do sexo



            


Maria e Inês vão “morar” na boite Casa Vermelha, onde são instruídas sobre as regras da casa, os tratos com os clientes e o que lhes caberá nesta “atividade”. Entende-se desde o início que a Casa Vermelha é a prisão em que ambas são trancafiadas e dela escapar será difícil. Tudo ali conspira para que se tenha esta idéia. As garotas sofrem todo tipo de restrição, nenhuma vida para além das quatro paredes lhes é permitida. Para complicar ainda mais, Saraiva não as vê como seres humanos, mas como fonte de lucro e delas suga tudo o que pode. Filas de clientes se sucedem em seus quartos, como se estivessem em um “fast-food sexual”. Em flashbacks, eles se revezam, pouco importando se estão diante de crianças, limitadas em seu prazer e sem resistência física e moral para satisfazê-los.



          


Os próprios garimpeiros, como mostrados por Lagemann, perderam toda individualidade. Nenhum deles existe enquanto personagem que se sobressaia e seja mais do que vulto nos corredores do bordel. Não dá para não lembrar dos filmes que trataram senão do tema da exploração sexual infantil, mas da violência a que são submetidos os prisioneiros em penitenciárias administradas por chefes animalescos e sádicos. Principalmente “Nevada Smith”, de Henry Hartaway, “Brutalidade”, de Jules Dassin, e “Expresso da Meia-Noite”, de Alan Parker, clássicos deste gênero de filme.


 


         
Chefe de prisão é personagem-clichê


             


Em “Nevada Smith”, western com Steve McQueen, um mestiço para se vingar dos homens que mataram seus pais persegue-os até uma penitenciária no meio da floresta, onde é submetido às mesmas violências que os demais sentenciados. Uma das formas de escapar ao açoite é fugir através do pântano. E em “Brutalidade” e “Expresso da Meia-Noite” há o policial violento que usa sua autoridade para exemplificar os presos. Em “Anjos do Sol” sobressai a metáfora do bordel como prisão e a fuga como busca da liberdade, pontuadas por referências explícitas a estes filmes. Com relação ao primeiro, a floresta intransponível é, ao mesmo tempo, desafio para que se alcance o que o espectador espera: a vitória de Maria, como alguém que ousou fugir da Casa Vermelha; já no que se refere ao segundo e ao terceiro, é Saraiva que se sobressai como o chefe da penitenciária que deve ser desafiado e derrotado em seus próprios termos.



         


Este é o segundo ato. Nele Maria e Inês aprendem que, para os submetidos à exploração, sempre existe a possibilidade de tornar-se livre. É isto que as torna humanas, possuídas de livre arbítrio. A prisão/boite/bordel é a caixa-fechada que não lhes mostra o horizonte. Existem aquelas que, como Shirley, preferem o bordel à sua vida anterior, pois o que a espera é muito pior: a fome, a miséria, a degradação em que sua família vive. Há ainda Fátima que ironiza o próprio nome: “isso não é nome de gente”. E Celeste (Mary Sheila), a negra, que vive às turras com Saraiva, enfrenta-o e ele nada mais pode fazer para atingi-la, porque a relação entre ambos ultrapassou os limites entre explorada e explorador.  Para Maria e Inês não há como suportar sua nova condição. Enxergam para além da prisão, a liberdade. Tudo na Casa Vermelha tem chave, grade, corredor, vigia, capanga armado. As meninas são mercadorias que Lourenço e Saraiva não querem perder. É a forma também de eles manterem ativos os garimpeiros no meio da selva.
         



          


Denúncia do filme cai no vazio
           
          


Por mais que este segundo ato mantenha o interesse do espectador, a história em si não é mais sobre a exploração de menores, sim de garotas que são fechadas no bordel Casa Vermelha. Pode ser uma forma de manter o interesse do público, dramatizar, gerar suspense – elas escapam ou não escapam? A denúncia se perde. Fica-se o tempo todo torcendo para que a garota fuja, consiga vencer a selva, Saraiva, seus capangas armados e seus cachorros. Isto fica claro quando a fuga realmente acontece e há o fracasso. Teme-se que elas sejam punidas. Quando isto acontece, retornamos ao campo do filme-de-prisão. Vemos o “chefe da penitenciária” punir a prisioneira sob os olhares intimidados das meninas e dos garimpeiros.



            


Ninguém intervém. Saraiva é a autoridade máxima do vilarejo. Nem o delegado o desafia. Muito menos as meninas, temerosas de sofrerem o mesmo castigo. Ao verem o que acontece a Inês, mergulham no estupor. Diante delas está o que a busca do lucro pode causar. Lagemann não mostra a execução de Inês, apenas a sugere. Usa elipse, deixa à imaginação do espectador o terror que a ação de Saraiva gera nos garimpeiros e nas meninas. Inês fica estendida na terra úmida, sob os olhares atônitos desses seres que perderam a capacidade de reagir frente a tal ato de tortura.


 


            
 Luta pela liberdade é ponto de equilíbrio


             


Esta seqüência abre espaço para o terceiro e último ato.  É quando o aprendizado de Maria sobre a prisão se fecha. Já aprendeu que sua família, Saraiva e Lourenço estão ligados, cada um à sua maneira, à mesma estrutura social que a penaliza. Evade-se para outro mundo. Celeste, consciente de que não pode mais se erguer do pântano em que vive, usa sua situação para solidarizar-se com aquelas que lutam pela liberdade. Sabe dos caminhos, das fragilidades da “prisão” e das fraquezas de Saraiva, e deles se vale não só para ajudar vítimas como ela, mas, sobretudo, para derrotar aquele que a oprime. É o ponto de equilíbrio do filme. Sua consciência. É quem dirige Maria para os caminhos da liberdade.
            


 


Ela, Maria, analfabeta, fica diante de um mundo que a domina e dele não sabe escapar. Mal sabe se defender dos ataques de Saraiva, da forma como ele a acolhe e dela tenta arrancar seus segredos, sua docilidade, sua infância e, sobretudo, sua pureza. Aprende rápido, apoiada em Celeste. Só não entende porque algo tão dolorido quanto a relação sexual pode dar prazer a alguém. Inês a instrui e, inclusive, lhe ensina as artimanhas da mulher numa situação de total submissão aos zangões. A começar por Lourenço que, a semelhança do senhor feudal que na noite de núpcias de suas servas tinha direito à primazia, usa-a antes do filho, logo quando a compra em leilão. É nesse emaranhado de ações libidinosas e cruéis que ela, Maria, vai da puberdade à vida adulta forçada. E também é o que a empurra para a luta pela liberdade. Uma liberdade que também embute o risco de morte, que ela assume. Há um objetivo a alcançar, uma “terra da promissão” que surge como um número, única coisa que ela sabe decifrar, pois não sabe ler. Nem tudo, porém, é redenção.


             



Jeito macio de cafetina não deixa de assustar


             


Nisto Lagemann se posiciona de maneira exemplar. Une os dois universos: o de Lourenço/Januário no meio da selva ao de Marlene na Cidade Maravilhosa. Enquanto que com eles, Maria é violentada de todas as formas, inclusive com linguagem de baixo calão, com Marlene as relações são mais suaves. Ela a trata bem, procura não assustá-la, submetê-la a maus tratos, ameaças. Marlene é mais avançada, uma profissional moderna, porém, igualmente exploradora. Sabe preparar Maria para enfrentar o “novo mundo”. Maria entende logo que maneiras finas, suaves, não são atenuantes para reduzir o impacto da exploração sexual infantil, são igualmente inaceitáveis. Em “Anjos do Sol” é o que permite a Maria entender os dois mundos que se lhe apresentam: ambos irão manter sua situação de explorada e violentada cotidianamente.



            


No final, a solução que Lagemann encontrou para apresentar a prostituição infantil ameniza a crueza do tema. Ao torcer pela fuga de Maria, o espectador não se vê diante de uma criança explorada sexualmente, mas de alguém que precisa escapar a uma situação humilhante e cruel. O filme se torna desigual. No entanto, sua coragem em tratar, mesmo desta forma, um tema tão urgente e presente na vida brasileira, é louvável. Afinal, como ele adverte nos letreiros finais, são mais de 100 mil crianças submetidas à prostituição no Brasil de hoje. É degradante para um país que cria programas para salvar bancos da falência e não monta um mutirão para tirar famílias iguais às de Maria e de Inês da miséria em que vivem. O resultado só pode ser o visto na tela.



  


“Anjos do Sol”. Drama. Brasil. 2006. 92 minutos.  Roteiro: Rudi Lagemann. Direção: Rudi Lagemann. Elenco: Antônio Calloni, Otávio Augusto, Darlene Glória, Fernanda Carvalho, Biana Comparato e Mary Sheyla.     

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