“Antes Que o Diabo Saiba Que Você está Morto”

Sidney Lumet conta a história de uma família pequeno burguesa, cujos filhos desencadeiam um confronto de proporções incontroláveis, com desfecho dos mais trágicos

Muitos fãs do diretor estadunidense Sidney Lumet já o imaginavam aposentado. Aos 84 anos, depois de brilhar por cerca de 50 anos cinema, ele parecia não ter mais fôlego para investir em histórias que destoassem do marasmo imperante. Seu último filme “Antes Que o Diabo Saiba que Você Está Morto” prova o contrário. Não só está em plena forma, como indica caminhos difíceis de serem imitados pelos cineastas atuais. Lumet continua sendo um criativo encenador, rigoroso, demolidor e disposto a ir às últimas conseqüências em sua proposta cênica, como em suas obras mais famosas (“O Homem do Prego”, “O Veredicto”, “Serpico” e, sobretudo, “Rede de Intrigas” e “Um Dia de Cão”). Em cada uma delas, os homens criam as armadilhas nas quais irão se enredar ou cavar a própria sepultura. E delas não conseguem mais sair, pois a cada gesto ou ação se tornam mais vítimas e algozes, envolvendo inocentes e cúmplices em seus atos. De forma tão contundente que eles, afinal, atraem a violência que se volta contra eles.


 


 


Em “Rede de Intrigas”, sem dúvida o filme que mais profundo penetrou nas entranhas da mídia, no caso da televisão, temos o apresentador (Peter Finch) que, depois de atingir picos de audiência, se transforma num profeta eletrônico. Passa a denunciar as mazelas da sociedade estadunidense e dos próprios senhores da mídia. Não deixa escapar ninguém. Todos o querem fora do ar, ele insiste e para espanto da audiência morre quando está no ar. Tal virulência também já havia gerado polêmica em “Um Dia de Cão”, baseado em fato real, do jovem (Al Pacino) que, junto com um amigo (John Casale), assalta um banco para, com o produto deste, pagar a operação de troca de sexo do companheiro. Dá para perceber que Lumet gosta de mexer em vespeiro. Seus temas trazem sempre o homem vivendo no limite, insurgindo-se contra o sistema que o oprime ou está podre (“Serpico”), equilibrando-se em finas lâminas criadas por uma sociedade que não lhes dá espaço, mas os espreme até se insurgirem, fazendo explodir cacos para todos os lados.


 


 


Relação entre filhos oscilam entre a amizade e o ódio


 


 


“Antes Que o Diabo Saiba que Você Está Morto” é a história da família Hanson, da pequena burguesia, do ramo de joalheria. Seus filhos, adultos, oscilam entre a amizade e o ódio velado um pelo outro e o respeito e a desconfiança dos pais. Andy (Philip Seymour Hoffman) é executivo de uma grande empresa, Hank (Ethan Hawke), o irmão mais novo, trabalha numa pequena empresa, o pai, Charles (Albert Finney), e a mãe Nanette (Rosemary Harris), cuidam dos negócios. Neste entrecruzar familiar há a mulher de Andy, Gina (Marisa Tomei) e os problemas. E o espectador jamais viu problemas tão complexos quanto os da família Hanson. Sob a aparência de um drama policial, com toques de filme-noir, Lumet tece uma trama em flashbacks, numa espécie de mosaico que revela as entranhas dos Hanson, sem deixar escapar um detalhe sequer.


 


 


Eles têm a aparência de família normal, que cuida de tudo e de todos. Charles, na terceira idade, ainda curte a mulher, mostra-se apaixonado. Brinca com a neta e se deixa encantar com Andy e Hank. Até ocorrer o aparentemente inusitado e tudo mudar. Os ambientes traduzem certo torpor, provocado pela fotografia de cores estouradas,  de Ron Fortunato, típicas de “Cidade de Deus”, que, pelo visto, fez escola. Há a sensação de que algo está por acontecer (e não é coisa boa) e a cidade não é um bom lugar para se viver. Este algo por acontecer está fora de controle, nuance típica dos filmes de Lumet. Ele vem na pele de um quinto personagem, seguro de si, colocado ali para destoar, fazer avançar a loucura e a violência que irá tomar conta de todos. A fragilidade com que Ethan Hawke faz Hank, meio abobalhado, inseguro, influenciável, dará o tom do filme. Tivesse ele outro comportamento, Andy não o dominaria.


 



Atores brilham com personagens que traduzem o mal estar atual


 


 


Hank, perdedor, separado da mulher, a quem deve a pensão da filha, é desses homens que sobrevivem à sombra paterna e da bondade alheia. Ele é o centro de todos os recalques do irmão, sempre a desafiá-lo. Lumet debruça-se sobre ele, lhe dá espaço, deixa-o solto, a ponto de o espectador identificar-se com ele, sem para ele torcer. Quando o faz com Andy é para atraí-lo para o redemoinho. Andy é controlado, frio, capaz de decidir numa fração de segundos o destino dos que o cercam. Ainda mais feito com esmero pelo ótimo Seymour Hoffman, de “Capote”, cinebiografia do jornalista, escritor e roteirista estadunidense Truman Capote. Ele vai do sorriso aberto, desbragado, na relação amorosa com a mulher à frieza do momento da separação, quando abre a carteira e dá dinheiro para ela ir embora. São momentos de pura dramaturgia, de cinema sem retoques, sem efeitos especiais. O cinema de Lumet é sempre dos atores, ele os deixa brilhar.


 


 


Talvez se aproveitando da narrativa circular, tão em moda (vide “Babel”, do mexicano Alejandro González-Iñárritu), Lumet vai e volta aos personagens. Noutras vezes os deixa se enredar, como se num solo, nos capítulos que se iniciam e não se encerram na mesma seqüência, para regressar depois ao mesmo ponto. Neste vai-e-vem, ele solta os personagens e os mostra por inteiro. É bom ver Albert Finney (“A Sombra do Vulcão”, “Erin Berkovich”) como Charles, enraivecido, colérico, numa cena em que ele e Seymour Hoffman acertam as contas do velho, o pai, com o novo, o filho. Há ali uma vingança a ser perpetrada. Algo de podre. O carinho inicial se torna uma explosão de sentimentos reprimidos até chegar ao acerto de contas. Freud e Maquiavel convivendo no mesmo homem: Andy. Então se percebe porque Lumet não se demora no fato desencadeador dos choques e da tragédia. Um detalhe a que volta sempre através dos telefonemas ameaçadores dos executivos da empresa, nada mais.


 


 


Filme é drama-policial que mostra fraturas familiares


 


 


Ela, a tragédia, não tem sua raiz nos problemas enfrentados por Andy em sua empresa, eles estão no que Charles fez dele e da maneira com que educou Hank. Charles quer se mostrar vencedor, porém fracassou na educação dos filhos. E Andy o revela sem que ele o aceite. A cena, de grande tensão, desencadeia seu ódio. O que virá a seguir é apenas conseqüência. Então, o drama policial, fica para trás, vê-se, a partir daí, uma explosão de sentimentos reprimidos, de recalques, de frustrações infantis. Ele não está mais em si, extravasa seu ódio por Charles no que vier pela frente. Lumet segue-o, deixa-o dominar, numa contundência difícil de ver no cinema atual, em que impera a beleza dos enquadramentos, dos detalhes, dos gestos excessivos dos personagens, e, depois, nada daquilo contribui para esclarecer reações ou relações de uns com os outros ou com o meio onde vive. Em “Antes Que o Diabo Saiba Que Você está Morto”, Lumet filma em plano médio, com eles se movendo no quadro, se aproximando ou se afastando da câmera. E, quando mostra um detalhe, é porque ele completa, esclarece a ação. Um cinema enxuto, portanto.


 


 


Na cena crucial do filme, quando ele mostra a arma, o espectador entende o que irá acontecer, mas não da forma que imaginou. A roteirista estreante Kelly Materson põe seus personagens em situações que exigem um diretor pouco disposto a fazer concessões. Sua história envolve alta dose de sadismo, de crueldade, para os personagens atingirem os limites impostos pela dor. Eles praticaram o mal absoluto, para escapar ao impasse familiar e à possibilidade de derrocada de um deles, ou de todos. Agora, quando as coisas saíram de controle, nada mais lhes importa do que limpar os vestígios deixados pelo caminho. Ambos circulam por ambientes sofisticados, notadamente o apartamento do traficante, de paredes de cores fortes, decorado com telas modernas e pontuado por móveis de estilo. A música, ao invés de acentuar o clima, a tensão, demarca seus estados de espírito, não sendo mero adorno ou tentativa de envolver o espectador.


                 


Cheio de detalhes, filme ironiza gosto de traficante
                 
                 


Andy ao chegar à primeira vez ao apartamento do jovem traficante o faz de forma inesperada, vai entrando, ouve-se uma marcha militar, da marinha americana. Presume-se que se trate de um filme de guerra, mas, para nosso espanto, vê-se o desenho infantil. O irado e perigoso traficante deliciava-se, antes da chegada de Andy, com desenho infantil. Melhor ironia, não há. Estes detalhes podem passar despercebidos ao espectador, mas é através deles que Lumet faz seus comentários mordazes, como se dissesse: ele, o jovem traficante, não passa de uma criança, perigosa, com certeza. O mesmo se dá com a explicação de Andy a Hank, ao tentar convencê-lo a executar seu plano. Diz-lhe que ele pode usar uma arma de brinquedo. Tão simples, assim: uma arma de brinquedo. E nada aconteceria. De novo uma ironia: crianças mexendo com armas de brinquedo; acabam aprendendo a usar armas de verdade.


 


 


 


De tensão crescente até o desfecho, “Antes Que o Diabo Saiba Que Você está Morto” nos faz mergulhar numa tragédia grega em que filhos e pais se engalfinham para acertar suas contas e acabam por provocar mais dores do que imaginavam. E Lumet criou mais uma de suas obras-primas, tendo a contribuição de um elenco magistral, afinado com suas propostas de ir fundo nas entranhas de uma América que ataca não só os que vivem ou estão fora de seu território quanto os seus próprios entes queridos. Algo de podre projetou-se para além da Dinamarca! Com a diferença de que não é apenas o dinheiro o impulso desencadeador da tragédia, também a criação dos filhos Hanson, contribui, e muito, para que ela se estabeleça. Lumet atesta que uma sociedade doente é capaz de mastigar as próprias entranhas. Em nome de um bem estar sem sentido. Gina, ao largar Andy, o prova: ela diz apenas que se cansou. E ele aceita a situação, prometendo-lhe dinheiro mais tarde. Sem tumulto ou discussão. O dinheiro pode ser uma solução ou princípio de uma tragédia. Basta apenas do ângulo que se veja as coisas.


 


 


“Antes Que o Diabo Saiba Que Você está Morto” (“Before the Devil Knows You´re Dead”). EUA. Drama. 2007. 117 minutos. Roteiro: Kelly Masterson. Fotografia: Ron Fortunato. Direção: Sidney Lumet. Elenco: Philip Seymour Hoffman, Ethan Hawke, Albert Finey, Marisa Tomei, Rosemary Harris.    

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