As comidas dos ''Dias Grandes'' no sertão e queimação do Judas

Descendo de uma família na qual comer é um ritual. Adotei em minha casa a cultura do comer bem e de celebrar datas, fatos e feitos com comidas especiais. Há 33 anos sigo a tradição das ''comidas religiosas'' no Natal e na Semana Santa. Não tenho religião,

Em minha casa nos ''Dias Grandes'' (nome da Semana Santa no sertão), desde a segunda-feira só comemos peixe, bacalhau e mariscos – camarão, caranguejo, sururu e siri. No Sábado de Aleluia, desenfastiamos: um churrasco que dura o dia inteiro. Escrevo no Domingo de Páscoa e constato que desde que tenho a minha própria casa foi a primeira vez em que passei a Semana Santa em outro lugar, nas agradáveis companhias de Luciana, Silvana, Débora, Arthur e Álvaro.


 


 


Aos borbotões chegam memórias de 32 semanas santas preparando apetitosos pratos com cheiro de infância… Fuçando na memória, até os 10 anos passei os ''Dias Grandes'' em minha casa no sertão. As saudades são tamanhas que sinto o odor das comidas! Até os 14 anos, passei em Colinas (MA), onde assistia às duas missas diárias do Domingo de Ramos à Páscoa; e degustava suculentos peixes do Itapecuru e do Alpercatas, exceto na sexta-feira, quando o almoço era torta de bacalhau e o jantar era arroz de bacalhau, da marca Nem – cozinheira da Casa do Estudante.


 


 


Uma vez, fui passar a Semana Santa na fazenda dos pais da Meirinha, a Saco, arredores de Colinas. Dias de jejum e comilança divina. Nunca mais voltei. Lá vivi uma experiência arrepiante. Tive, pela primeira vez, uma sensação de ''déjà vu'', tão real que sabia que atrás do galinheiro havia um pilão… e uma galinha chocando ovos num cofo (vasilhame de palha de babaçu). Senti como se algum dia vivera ali!


 


 


A minha filha Débora veio de Porto Alegre para matar as saudades. Falou da ansiedade de comer o ''bacalhau da mamãe''. Disse-lhe que não ficaríamos em casa, pois eu estava cansada demais. Ao notar o seu semblante de pura desolação, confessei que, ao reservar a pousada, combinei que na Sexta-feira da Paixão eu faria o meu tradicional ''bacalhau à espanhola'' para nós. Ela saltitou de alegria dizendo: ''Êh-bá!'' .


 


 


Na quinta-feira, chegamos à pousada Paragem do Vale (recomendo!), a um quilômetro do haras da fazenda Bella Vista, onde mora meu cavalo Taj Mahal e passo fins de semana em paradisíacas cavalgadas. No sábado, fomos à queima do Judas em Piedade do Paraopeba (Brumadinho-MG), a dez minutos de carro da pousada, povoado seiscentista para uns, setecentista para outros, mas dizem que é mais antigo que Sabará, Mariana e Ouro Preto. Possui uma bela igreja pré-barroca (1713), a matriz de Nossa Senhora da Piedade do Paraopeba, além da capela do Rosário, sede da confraria de escravos que a erigiu à mesma época da matriz. Sinceramente? Esperava um revival de outros espetáculos que guardo na memória. Só senti tristeza…


 


 


A tradição de malhar o Judas vem sendo perdida. Coisa mais sem graça, nem foi lido o testamento do Judas – ''uma crônica do lugar e das pessoas, uma crítica e denúncia social, uma sátira mordaz''! Piedade do Paraopeba merece reestilizar a queima do Judas. Em minha meninice, fiz muitos judas com cabeça de mamão verde e olhos de bolinhas de gude. Enchê-los de traques de são João e as experiências de escrever o testamento deles e lê-los antes da malhação eram farras doces e únicas!

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor