As ferrovias como instrumento de desenvolvimento nacional – II

As duas crises do petróleo, seguidas pela crise da dívida externa, colocaram o Brasil em uma situação financeira extremamente vulnerável. Diversas estatais – entre elas a RFFSA – foram forçadas a endividar-se no exterior, para obter os tão necessários dólares para fechar a Balança de Pagamentos. Vivíamos tempos de “thatcherismo” (1979-1990), que logo se expressaria em políticas neoliberais.

Ao assumir a Presidência da República, Fernando Collor de Melo aderiu à cartilha neoliberal e criou – através da Lei 8.031/90 – o Programa Nacional de Desestatização (PND), que pouco depois incluiu a privatização da RFFSA, dando ao BNDES a função de executar o PND. O seu Impedimento, em 1992, lhe inviabilizou a privatização das ferrovias, tarefa que será fielmente executada por FHC, entre 1996 e 1998. Assim, entre 1996 e 1998, a RFFSA leiloou suas malhas Oeste (1,621 km, bitola métrica), Centro-Leste (7.080 km, bitola métrica), Sudeste (1.674 km, bitola larga), Tereza Cristina (164 km, bitola métrica), Nordeste (4.536 km, bitola métrica) e Sul (6.586 km, bitola métrica).

A Ferrovia Paulista S/A (FEPASA) – que em 1971 havia unificado as várias ferrovias estaduais que competiam entre si – foi incluída no programa de saneamento da dívida do Estado de São Paulo com a União e privatizada em 1998 (4.236 km, bitola métrica e larga), por míseros R$ 360 milhões. O Estado de São Paulo arcou com os custos da demissão de 10.026 funcionários, entre 1995 e 1998, e assumiu a responsabilidade pelo pagamento dos 50 mil aposentados da ferrovia. Também a Ferroeste, do Paraná (248 km, bitola métrica), foi vendida em 1998.

Ao todo, foram repassados quase 28 mil km de ferrovias, por em torno de R$ 2 bilhões, pagáveis em prestações a perder de vista. Lembremos que o custo da implantação de apenas 1 km de ferrovia é de em torno de R$ 2 milhões e que as ferrovias foram concedidas por 30 anos, renováveis por mais 30, e que as concessionárias receberam não só a linha férrea, mas todo o sistema de estações, oficinas de manutenção, prédios, locomotivas, vagões e demais equipamentos operacionais. Só uma concessionária – a ALL, que hoje controla quase 40% de todo o parque ferroviário brasileiro – recebeu 11.750 km de ferrovias, 934 locomotivas e 27.919 vagões.

A ANTT (Agência Nacional de Transporte Terrestre) – responsável pela regulação e fiscalização das concessões – só foi criada em junho de 2001, cinco anos após a primeira privatização, caracterizando-se, desde então – como comprova sobejamente o Ministério Público Federal – pela omissão e conivência em relação ao descumprimento das obrigações contratuais pelas concessionárias.

O resultado foi desastroso para o patrimônio público, como é denunciado pelo Doutor em Engenharia da UFRJ Eduardo Gonçalves David:

”Não se conhecem casos significativos nos quais, em virtude da privatização, a exploração se expandiu. Ocorreu o contrário, trechos subutilizados no passado estão hoje totalmente abandonados, de tal forma que é pura ficção a quilometragem de linhas divulgada, pois contabiliza o patrimônio público 'oficialmente repassado'. Na realidade, alguns prédios desativados ruíram, o mato cobriu a linha não utilizada, trilhos e dormente foram furtados, a faixa livre foi invadida por casebres e até por sólidas construções de alvenaria, vagões locomotivas e carros de passagem inservíveis foram cortados a maçarico e vendidos como sucata. (..,.) ninguém sabe e ninguém viu, simplesmente sumiu. (…) Respeito ao patrimônio histórico e cultural deve ser buscado em outra freguesia.” (DAVID. Trilhos…, p. 28).

Referindo-se ao que se passou com a Fepasa, após a sua privatização, o Engenheiro Adriano Murgel Branco, ex-Professor da Universidade Mackenzie, ex-Secretário de Habitação e ex-Secretário de Transportes do Estado de São Paulo, afirma:

”Hoje a rede de 5 mil km de ferrovia, concedida à iniciativa privada, não opera nem a metade da carga de 1986, foi interrompida em trechos importantes para o desenvolvimento estadual, atua pouco no transporte para o porto de Santos (das 80 mil toneladas anuais ali operadas, apenas 20% chegam ou saem por ferrovia) fatos que resultam em ineficiências, altos custos e perda de competitividade.” (BRANCO, Ferrovia…., p. 49)

Se olharmos o quadro em nível nacional, dos 28,8 mil km de ferrovias concedidas pelo governo FHC, dois terços foram simplesmente desativados e abandonados pelas concessionárias – à revelia dos contratos de concessão, causando a dilapidação do patrimônio arrendado e enormes prejuízos à economia nacional – com a complacência e a omissão da ANTT, a quem caberia a tarefa de fiscalizar a prestação desse serviço público.

Como afirma o Ministério Público Federal em recente Representação ao Tribunal de Contas da União (07.06.11):

”São inúmeros e recorrente os casos de dilapidação do patrimônio da extinta Rede Ferroviária Federal S.A. pelas concessionárias do serviço público de transporte ferroviário de cargas (…) seja em relação aos bens imóveis ou móveis arrendados, seja em relação a materiais rodantes ou estruturas e superestruturas utilizados pela concessionária (…). Os contratos de concessão/arrendamento são sistematicamente descumpridos (…). O Poder Concedente silencia e omite-se de forma inaceitável. A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) não se tem desincumbido a contento de sua tarefa de regulação e fiscalização. Na falta de efetivo controle, as concessionárias como que se apropriam do negócio do transporte ferroviário de carga como se fosse próprio; fazem suas escolhas livremente, segundo os seus interesses econômicos. O quadro é de genuína captura, em que o interesse privado predomina sobre o interesse público. (…) o Estado entregou à iniciativa privada aproximadamente 28 mil quilômetros de estradas de ferro (estrutura e superestrutura). Desses, cerca de 16 mil quilômetros foram abandonados unilateralmente pelas concessionárias, ao arrepio da legislação e dos contratos de concessão. O prejuízo ao erário daí advindo pode ser estimado em mais de 40 bilhões. (…) As concessionárias limitam e tem limitado a oferta de transporte ferroviário apenas e tão somente a alguns trechos de alta rentabilidade, normalmente corredores de escoamento de produção agrícola e de minérios para os portos brasileiros. E sempre para os mesmos clientes. (…) os leilões (…) culminaram na alienação das ferrovias para os antigos clientes cativos/preferenciais da Rede Ferroviária Federal S.A., que, desde então, sobrepõem o interesse econômico (privado) em detrimento do interesse público na prestação contínua, adequada e acessível aos usuários, impedindo que o transporte ferroviário seja efetivamente uma alternativa ao modal rodoviário.”
(MPF. Representação…, p. 2, 8-9)

Ou seja, o Brasil – depois de ter contado com uma malha ferroviária, já modesta, de 37 mil km – hoje tem menos de 10 mil km de ferrovias em funcionamento, a serviço unicamente do interesse privado de algumas mineradoras e outras poucas empresas exportadoras de produtos primários.
Por isso mesmo, acatando a Representação do MPF, acima referida, contra a Agência Nacional de Transportes Terrestres, o TCU emitiu no dia 15.02.2012 o acórdão 312/2012 determinando à ANTT que:

“a) no prazo de 45 dias, apresente ao Tribunal um relatório descritivo (…) de modo a identificar todos os trechos ferroviários concedidos (…) classificados (…) em uma das seguintes situações:
a.1) em razoável ou plena utilização da capacidade instalada;
a.2) subutilizados (média inferior a um trem de carga por dia, transitando no trecho); ou
a.3) em completo desuso; (…)
b) no prazo de 150 dias apresente ao Tribunal um completo levantamento do estado de conservação dos trechos classificados como subutilizados ou em completo desuso, informando que providências foram tomadas para assegurar a execução dos serviços.”
(TCU, Acórdão… , p. 1)

Decisão que deixa claro a situação de descalabro a que levou a privatização predatória do nosso sistema ferroviário, levada a efeito pelos governos neoliberais.

O desmonte das ferrovias e a irracional estrutura dos transportes no Brasil

O resultado de todos esses anos de abandono do sistema ferroviário e da falta de um plano estratégico para a locomoção de cargas e de passageiros no Brasil é a manutenção de uma matriz de transportes extremamente onerosa para a economia do país, altamente poluente, causadora de um crescente congestionamento de nossas vias e estradas e responsável por mais de 40 mil mortes a cada ano, só por conta de acidentes com veículos automotores.

Assim, ainda que os números não sejam precisos, estima-se que hoje o transporte de cargas no Brasil ocorra 60% por rodovias (em São Paulo 93% e no Rio Grande do Sul 85%), 23% por ferrovias, 13% por hidrovias, 3,6% por dutos e 0,4% aéreo, em flagrante dissintonia com a maioria dos países do mundo.

Só como comparação, nos Estados Unidos – grande incentivador do “rodoviarismo” no nosso país – o modal rodoviário movimenta 28% das cargas, as ferrovias 40%, as hidrovias 16% e os dutos 16%. Sua rede ferroviária, que já foi de 400 mil km, reduziu-se, mas mantém 240 mil km (para uma área de 9,4 milhões de km2).

Nos 25 países da Europa da OCDE, ainda que as rodovias movimentem 44% das cargas – e aqui pesam as pequenas distâncias – as ferrovia totalizam 198 mil km de (para 4 milhões de km2), além da intensa utilização das hidrovias.

O resultado é que o nosso custo logístico em transporte é de 17% do PIB, enquanto nos países desenvolvidos é de 6 a 8% e nos países emergente é de 12%. Situação que afeta seriamente a nossa competitividade.

Segundo estudos do Porto Autônomo de Paris, os custos indiretos e operacionais dos principais modais de transporte de cargas são:
Modo rodoviário – US$ 66,0 / mil ton/km
Modo ferroviário – US$ 28,4 / mil ton/km
Modo hidroviário – US$ 14,3 / mil ton/km
(BRANCO, Ferrovia…., p. 48)

O que nos dá uma proporção aproximada de custo de 1 para 2 e para 4,7, mostrando as enormes perdas para a economia nacional ao manter a atual matriz de transporte. Apesar do transporte ferroviário ter um custo muito inferior ao do transporte rodoviário, com tarifas, na média mundial, 30% menores, no Brasil assistimos o fato insólito de que o seu preço é muito próximo do preço do transporte por caminhões. Algo que muitos atribuem ao fato que muitas das operadoras das linhas férreas também são detentoras de grandes frotas de caminhões…

Prosseguindo nossa análise comparativa entre os distintos modais, se confrontarmos a sua eficiência energética constatamos que o modal rodoviário fica em uma situação ainda pior: o consumo por mil ton/km no modal rodoviário é de 43,4 litros, nas ferrovias 12,6 e nas hidrovias 7,4, em uma proporção de 1 para 1,8 e para 6 (BRANCO, Ferrovia…., p. 49).

O Poder Público concedente não tem tomado qualquer iniciativa para que o transporte ferroviário volte a cumprir suas funções sociais e coletivas. Como afirma o Ministério Público Federal:

“Trechos de menor rentabilidade e de usuários menos expressivos ou não ligados aos investidores do setor não despertam interesse da iniciativa privada e encontram-se totalmente abandonados e alijados do desenvolvimento nacional. Em resumo: é a iniciativa privada quem determina onde e em que condições o serviço público será disponibilizado. É por isso que grandes e inúmeros trechos ferroviários encontram-se abandonados, invadidos, depredados e sucateados. (…) transporte ferroviário brasileiro (…) caminha – a passos largos – para investimentos em grandes corredores ferroviários que visam unir regiões produtoras de monocultura e minérios para os mercados internacionais. Na realidade, os principais clientes e usuários do transporte ferroviário de cargas apropriaram-se do serviço público concedido, transformando-o em parte do ativo de suas empresas. (…) Ora, se assim é, não surpreende que as concessionárias optem por transportar suas próprias cargas, em detrimento do interesse público e da comunidade em geral.” (MPF. Representação…, p. 9-10).

BIBLIOGRAFIA CITADA

BRANCO, Adriano Murgel. Ferrovia versus Rodovia. In História Viva, Caminhos do Trem, vol. 6, De volta aos trilhos. VASQUEZ, Pedro (org). São Paulo, Dueto Editorial, 2008.

DAVID, Eduardo Gonçalves. Trilhos e cenários. In História Viva, Caminhos do Trem, vol. 6, De volta aos trilhos. VASQUEZ, Pedro (org). São Paulo, Dueto Editorial, 2008.

PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA. Representação do Ministério Público Federal contra a UNIÃO (Ministério dos Transportes Terrestres – ANTT) e América Latina Logística, 07 de junho de 2011.
TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, Plenário. Acórdão Nº 312/2012. TCU. 2012.

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