As ferrovias como instrumento de desenvolvimento nacional – III

Retomar o transporte ferroviário, colocando-o a serviço do desenvolvimento do país

O exame do passado e do presente das ferrovias só tem sentido se servir para orientar-nos na transformação dessa realidade, visando a construção de um sistema de transporte ferroviário que – integrado com os diversos outros modais – ajude a alavancar um Novo Projeto de Desenvolvimento Nacional. Para isso, devemos partir dos seguintes conceitos e propostas:

1. O transporte ferroviário tem de ser um serviço público estratégico, proporcionado ao conjunto da sociedade e da economia nacional, e não uma mera atividade comercial a serviço do lucro máximo e imediato de determinados grupos econômicos. Por isso, tem por vocação ser um serviço público.

2. Em decorrência, a sua implantação e ampliação – particularmente em um país continental como o Brasil – tem que ser planejada a médio e longo prazo, na perspectiva da integração nacional e dentro de um grande Projeto Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Portanto, não pode ser balizado unicamente pelas atuais demandas mercadológicas, pois as ferrovias têm o potencial de criar novas demandas e de induzir o desenvolvimento econômico e social em regiões hoje deprimidas ou pouco desenvolvidas.

3. A “Ferrovia Norte- Sul/ Sul-Norte" – que tem o objetivo de interligar o Brasil de Norte a Sul, desde o Porto de Rio Grande até o Maranhão e o Pará – deve ser concebida como um grande “tronco ferroviário” de bitola larga, veloz e de alta capacidade, com um percurso o mais retilíneo possível, que integre com modicidade tarifária as diversas regiões do país e esteja conectado ao conjunto de ferrovias já existentes (que na sua maioria fluem do oeste para o leste), além de interconectar novos ramais transversais a serem planejados pelo Poder Público.

4. Da mesma forma, o “Tronco Sul” – proposto em 2012, no 1º Plano de Investimentos em Logística (PIL1), que prevê uma ligação ferroviária moderna, desde São Paulo até o Porto de Rio Grande – deverá ser planejado como um “tronco ferroviário” de alta capacidade (veloz e com bitola larga) com o objetivo de integrar por ferrovia as áreas mais populosas e industrializadas – além de produtora de alimentos – de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

5. A Região Sul, através desses “troncos ferroviários” estratégicos para a integração nacional, é o espaço logístico privilegiado para a integração ferroviária entre o Brasil e o MERCOSUL, devido à sua proximidade geográfica com as regiões dos rios da Prata e Paraná e suas principais metrópoles. Mais do que isso, é o caminho ferroviário natural para a conexão do Atlântico com o Pacífico, através do chamado “Corredor Bi-oceânico” – em adiantado estágio de estudos e tratativas entre o Chile e a Argentina –, que cruzará os Andes através de uma ferrovia de baixa altitude, interligando de forma confiável os nossos países aos mercados do sudeste asiático, os mais dinâmicos do mundo.

6. Por todas essas razões, esses e outros “troncos ferroviários” que venham a ser construídos não podem – uma vez concluídos – ser entregues em concessão monopólica a empresas privadas comprovadamente incapazes de ampliar e qualificar as nossas ferrovias e carentes de qualquer visão de longo prazo acerca do papel estratégico do transporte ferroviário no desenvolvimento nacional, preocupando-se unicamente em obter o lucro máximo, a curto prazo, a ponto de sucatearem e abandonarem dois terços do patrimônio que lhes foi confiado.

7. Nesse sentido, o novo modelo apresentado pelo Governo Federal nos parece um importante avanço. Segundo ele, a empresa que vencer a licitação para a construção de uma ferrovia assumirá também a responsabilidade da sua manutenção e operação (da linha, não dos trens) por um número de anos previsto no edital. Com isso, a empresa construtora será a maior interessada na boa qualidade e durabilidade da linha. Concluída a via férrea, a União (através da VALEC) comprará 100% da capacidade de transporte da mesma – assumindo pelo empreendedor o risco da plena utilização da linha – e a licitará para tantos operadores de trens quantos sejam os interessados. Assim, se evitará o monopólio e a ferrovia poderá ser utilizada pelos mais variados operadores, seja para o transporte das mais diferentes cargas (grãos, minérios, produtos industrializados, contêineres, etc.), seja para o transporte de passageiros.

8. O novo sistema ferroviário a ser planejado e construído deverá ser, preferencialmente, de carga, de passageiros e de turismo – como ocorre na Europa, nos Estados Unidos, no Canadá, na Rússia, na China, na Índia e tantos outros países dos cinco continentes –, incluindo trens de alta velocidade, entre as grandes aglomerações urbanas, se possível com tecnologia nacional. Nesse sentido, deve ser examinado com atenção o projeto de desenvolvimento de um trem de Levitação Supercondutora (SQL), que se encontra em andamento no Laboratório de Aplicações de Supercondutores (LASUP) da Poli-Coppe-UFRJ – denominado “Maglev Cobra”.

9. As malhas ferroviárias devem estar integradas com os demais modais, em especial com o hidroviário – também subaproveitado no nosso país, apesar de termos importantes bacias hidrográficas e um enorme litoral –, além do rodoviário, indispensável para dar capilaridade à movimentação de mercadorias e de pessoas. Hoje estão disponíveis novas tecnologias que permitem que uma carga transite de forma extremamente rápida de um barco ou de um caminhão para um trem (carretas bimodais, contêineres, etc.), e vice-versa, sem necessidade do transbordo das mercadorias em si.

10. É preciso romper com a visão obtusa – do interesse de determinados grupos controladores – de que a ferrovia só serve para o transporte de minérios, grãos e outras cargas de baixo valor agregado. É preciso explorar suas possibilidades de transporte de contêineres, automóveis e todo o tipo de produtos industrializados, de forma eficiente e segura.

11. As características técnicas (bitola, etc.) das diversas malhas devem ser unificadas de Norte a Sul e de Leste a Oeste, de forma que uma carga embarcada em um vagão, em qualquer lugar do país, possa circular por toda a malha brasileira, sem necessidade de transbordo. Também é fundamental trabalhar para que as malhas ferroviárias dos diversos países do MERCOSUL e do continente Sul-Americano unifiquem as suas bitolas ferroviárias.

12. O desenvolvimento e a ampliação das ferrovias brasileiras devem-se dar de forma integrada com o fomento e o desenvolvimento de uma forte indústria nacional de insumos e equipamentos ferroviários, desde os mais simples aos mais complexos, de forma a diminuir ou eliminar nossa dependência externa nesse campo. É inacreditável que o Brasil – que possui as maiores e mais ricas reservas de ferro e de manganês do mundo e uma moderna indústria siderúrgica – ainda exporte minério de ferro e importe trilhos! Quanto mais vagões, locomotoras e equipamentos ferroviários diversos

13. Por fim, ao mesmo tempo em que a União aumenta os seus investimentos na ampliação e na modernização da infra-estrutura ferroviária nacional, construindo novas ferrovias estratégicas e integradoras, sob gestão pública, é preciso exigir que as atuais concessionárias privadas – que ainda têm mais de onze anos de concessão – honrem os seus compromissos contratuais, colocando em funcionamento regular a integralidade da malha que lhe foi concedida, modernizando tanto os caminhos de ferro quanto o equipamento rodante, barateando as suas tarifas – hoje muito próximas das rodoviárias, apesar de custos inferiores – e concedendo o “direito de passagem” a outras operadoras públicas ou privadas que o solicitem, dentro da concepção de um sistema ferroviário público, com multioperadores e de utilização máxima.

14. O descumprimento sistemático pelas empresas privadas dos contratos de concessão – com a benevolência da ANTT – não pode persistir e doravante deve-se prever a possibilidade da retomada das concessões pelo descumprimento dos contratos, ao invés, como muitas vezes é proposto pelas concessionárias, da confortável devolução ao Estado dos ramais não lucrativos ou pouco lucrativos, para que a iniciativa privada fique somente com a melhor parte e o Estado com os segmentos deficitários.

Sem pretender esgotar com essas sugestões uma questão tão complexa, esperamos ao menos ter contribuído para o avanço da discussão dessa importante temática.

Da mesma forma, temos plena consciência que esta não é uma discussão meramente teórica, de busca do convencimento através de argumentos, mas um tema que envolve interesses privados poderosíssimos – nacionais e internacionais –, que exige uma ampla mobilização política para que consigamos salvaguardar o interesse nacional.

* Durante os dois mandatos que exerceu como Deputado Estadual, Raul Carrion foi proponente e coordenador da Frente Parlamentar Gaúcha em Defesa da Ampliação e Qualificação das Ferrovias, em função do que realizou mais de vinte audiências públicas em todo o Rio Grande do Sul e participou de diversas reuniões nacionais sobre o tema.

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