As pontes de Madison

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As pontes de Madison. Este é um filme dos antigos, que pode ser visto e revisto, sem perder a poderosa mensagem que transmite. Não é dos mais citados na filmografia de Clint Stewood, mas poderia entrar na galeria dos clássicos do cinema de conteúdo existencial e filosófico. Gostar deste filme, ou escrever sobre ele, pode ser coisa démodé, babaquice romântica de quem não se fez apocalíptico e nem se embascacou no na mudernagem dos desvarios da modernidade.

Foi assim que o revi – e enquanto via, fui anotando clarões de pensamentos que são mais insigths poéticos do que papo-cabeça de crítico de cinema que não sou. Contento-me em ter aparecido como figurante no filme 2 filhos de Francisco, e de ter sido ator coadjuvante em documentário sobre vida e morte de Bernardo Elis, o imortal que morreria pouco depois de encenar ele próprio o seu enterro. Tão poderosa é a sétima arte que sou mais reconhecido por ter sido figurante no filme dos dois irmãos canoros do que pelos 40 livros que publiquei, ou do que ser um dos imorríveis da AGL.

Não vivemos nossa vida. Nossa vida é que nos vive, uma vez que estamos o tempo todo sob o comando do piloto automático dos condicionamentos e hábitos. Também não pensamos nossos pensamentos, somos pensados por eles – em torrentes nos chegam, agarrados aos dentes uns dos outros – são como irmãos siameses, multiplicados trezentas vezes treze. Assim, quando nossa existência chega a seu termo, a impressão que temos é a de que acabamos de acordar de um pesadelo. Mas então será muito tarde para saber que nós mesmos fomos causa dos desastres que nos destruíram. E quando estamos às vésperas de escutar o assovio das Parcas, temos a ardente vontade de despertar para a vida que se esvai, mal vivida e vilipendiada.

A pessoa que está perdida no vício de sua mesmice não quer romper com os laços que a aprisionam. Prefere comer do próprio vômito, alimentar-se daquilo que a mata. É quando a pessoa se agarra àquilo que é o motivo para se achar tão perdida. Então entra no caminho da destruição de toda esperança (que significa fazer de sua vida um inferno infinito) quando escolhe renunciar à certeza que só se pode ter uma vez na vida, e que tem um fulgor tamanho, que a ilumina como um sol interior.

Podemos amar as pessoas sem ter uma família. Muitos a têm, mas sem amá-la; assim não conseguem amar ninguém, dentro ou fora de seu clã familiar, até por não terem aprendido a amar a si mesmas. Ter uma família não é dormir na mesma cama, não é ver televisão na mesma sala, ou compartilhar da mesma refeição. Nem é participar da mesma tensão, e das mesmas confusões. “Francisca, você jamais será uma simples mulher”, diz o fotógrafo caçador da mutante e inefável beleza da vida e do mundo.

A mulher, no enlevo e devaneio de estar no aberto, em comunicação cantante com o cheiro e a textura de um campo florido, esboça o gesto de abrir a camisola ao vento, tendo nas mãos a coleção de poemas de W.B. Yeats. Isto soa, a si mesma, como uma confirmação de sua existência enquanto corpo, pessoa e Ser. Antes talvez não notasse a si mesma, passando-lhe o corpo desapercebida do fato de possuir e ser um corpo. “Me leve a algum lugar do outro lado do mundo”, é o pedido que faz a mulher. É o pedido crucial que faz toda pessoa que se acha prisioneira de alguém, de uma situação de vida, ou de si mesma, fantasma gerador de pesadelos e medos.

Para onde for a pessoa normotizada (a que vive em normose crônica) levará consigo seu corpo de dor. Apegada às suas memórias, recusa o novo, e a possibilidade do encontro com o aberto – assim, em seu medo do que não conhece, se faz refém do conhecido. Então prefere ficar com as escolhas dolorosas que fez, ou que fizeram para ela. Depois de certo nível a neurose é sem volta. Aprisiona a consciência de tal forma, que a morte se torna mais presente e mais viva, a cada dia que passa.

Assim sucedeu ao personagem de Clint Stewoond, do belo filme As pontes de Madison: no semáfaro, quando partia para longe e para sempre, ele a encontrou, casualmente. No semáforo, esperou que a mulher (Meryl Streep) saísse da prisão de seu medo de viver. Por que não conseguiu partir ao encontro de si? Por que recusou a certeza do amor que lhe chegara, sabendo que jamais o teve, e nunca mais voltaria a encontrá-lo? Então, com seu marido, ela foi embora para sua fazenda, escutando a propaganda do pesticida mais vendido em toda a região.

Os sonhos de uma pessoa são as asas de sua alma. Ninguém pode voar com elas, embora outros possam cortá-las, se assim o permitirmos. Não viveríamos tão alheios, tão estrangeiros ao presente, se soubéssemos que tudo passa, e que tudo, até a nossa preciosa vida pode acabar a qualquer instante. Por isto escreveu um filósofo: “Façam o que for preciso para serem felizes nesta vida, porque ela é muito breve”.

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