As vantagens de ser uma artista mulher

Dois filmes sobre o feminino e o ofício da arte chamam a atenção na atual temporada de premiações cinematográficas. Adoráveis Mulheres, adaptação de Greta Gerwig à novela Mulherzinhas, de Louisa May Alcott; e Retrato de uma jovem em chamas, de Céline Sciamma.

A heroína de Adoráveis Mulheres, Jo March, é uma escritora em busca de leitores, dinheiro e identidade própria, durante a Guerra Civil Americana. Em Retrato de uma jovem em chamas, Marianne é uma pintora com certa autonomia criativa já conquistada, na França do século 18.

Nas duas histórias, o amor romântico é metonímia para o fazer artístico. Jo March confia seus escritos ao professor e crítico literário Friedrich Bhaer. No caso de Marianne, a crítica vem da própria musa, Héloïse, uma jovem burguesa que caminha para um casamento arranjado.

Jo escreve histórias de capa e espada para os folhetins de Nova York, enquanto Marianne pinta retratos sob encomenda. Em um dado momento de suas trajetórias, ambas são questionadas por seus pares sobre a expressividade de suas obras.

Friedrich acredita no potencial da amada e pede que ela encontre o equilíbrio entre o apelo popular e a complexidade dramática, tal como Shakespeare. Héloïse reprova a pintura técnica, mas genérica, que a namorada executa dela própria, solicitando autenticidade e emoção.

Ter uma produção rejeitada é como se recusada romanticamente e, embora as duas artistas aceitem o desafio de aperfeiçoarem suas obras, o resultado desse esforço ecoa de formas distintas em cada narrativa.

Para Marianne, pintar a selvagem Héloïse é um prazer doloroso; se confunde com a fugacidade daquele amor, cuja intensidade, por outro lado, continuará a acompanha-las por toda vida. A ambição da artista, aqui, é eternizar a beleza de um instante.

Jo March suspende brevemente o impulso mercenário para escrever sobre o cotidiano aparentemente desinteressante de sua família, na tentativa de apreender a infância perdida que se esvai com a morte da irmã caçula. Aqui, a arte também é afeto e memória.

Mas, em Retrato de uma jovem em chamas, a sublimação por meio da arte do que não pode ser vivido é inegociável. O último plano do filme se demora nas lágrimas de Héloïse diante da ópera que lembra Marianne. É a tentativa da própria diretora, Céline Sciamma, de tornar memorável aquela história de amor.

Dois filmes sobre o feminino e o ofício da arte chamam a atenção na atual temporada de premiações cinematográficas. Adoráveis Mulheres, adaptação de Greta Gerwig à novela Mulherzinhas, de Louisa May Alcott; e Retrato de uma jovem em chamas, de Céline Sciamma.

Já em Adoráveis Mulheres, Jo March negocia o desfecho da protagonista de seu livro com o editor, em um chiste metalinguístico. Assim como em um casamento arranjado, a ficção também pode incorrer em concessões para agradar investidores, por mais feminista que a autora se pretenda.

Parece um pedido de desculpas da própria Greta Gerwig por refilmar pela sexta vez uma história datada, alicerçada em patriotismo e moral cristã. Tudo bem que o filme passa no teste de Bechdel – e, em se tratando de hollywood, isso ainda é novidade –, mas se o preço para figurar no mainstream é o idealizado final feliz, talvez não avançamos tanto assim do século 19 para cá.

Pode ser uma observação irônica de Greta para o fato de que as histórias femininas ainda são uma exceção na indústria cinematográfica. Nesse caso, artistas mulheres e suas subjetividades ainda são compreendidas como algo exótico, se inserem no mercado pela cota identitária.

É como se a estrela indie, recém-alçada à categoria dos premiáveis com Lady Bird no Oscar de 2018, dissesse: eu sei que o mercado não se importa com nossas histórias de verdade. Entramos pelo atalho do público de nicho, mas vamos lutar por nossa liberdade criativa.

O recado de Céline Sciamma é mais cético. Ainda em Retrato de uma jovem em chamas, a grande obra de Marienne, uma pintura do mito de Orfeu e Eurídice, só tem seu valor reconhecido em uma exposição porque foi inscrito sob a autoria de seu pai. Séculos se passam, e as mulheres ainda brigam para deixarem o lugar de musas, e serem autoras das próprias histórias.

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