As vinhas da lembrança e o milagre de existir

Por toda parte, nas coisas visíveis ou invisíveis, no que é tangível ou no sutil ou diáfano, manifesta-se a ordem das leis naturais imutáveis, veículos da sabedoria e equilíbrio da Super-Mente Creadora dos universos infinitos.Os que são harmônicos e obedientes às leis que regem o uni-verso interior ou exterior em que vivem, realizam com produtiva e imperturbável sabedoria a sua jornada nos caminhos do existir.

Os de alma sensível, que se fazem poetas (e até mesmo cronistas, os servidores de Cronos) preferem deixar de lado as bramuras de um mundo a afundar em violência crescente, detendo seu olhar contemplativo e criativo naquilo que inspira, evoca sentimentos positivos e emoções amorosas, buscando, no dizer de Cora Coralina, registrar os autos do passado, “antes que o tempo passe tudo a raso”. É o caso do escritor, cronista e historiador Hélio Moreira, poeta do escrever e do viver, nas horas vagas, que são poucas, haja visto ser ele renomado cientista da medicina, professor emérito e praticante da arte curativa de Hipócrates.

O ilustre intelectual segue a tradição brasileira, na qual grandes médicos conseguem ser ao mesmo tempo grandes escritores, Hélio Moreira, humanista autêntico, homem culto e apaixonado por toda matéria que tenha como foco a condição humana e a Vida que o alimenta, vasta moldura na qual o Homo Sapiens está inserido na milagrosa e dupla função de criador e criatura. A revelação inicial de seu talento literário deu-se no campo da História, com a publicação de sua marcante biografia de Couto Magalhães. Sua vocação humanista e sua capacidade de análise dos processos sociais, do embate das idéias e ideologias, confirmou-se com a publicação de seu livro…, onde, com notável sensibilidade, revela seu desencanto com o prometido paraíso socialista, objeto dos sonhos de sua juventude idealista e solidária.

Outra faceta de seu talento literário foi há pouco revelada: a de cronista dos bons, da velha estirpe dos que, a partir da memória e do olhar sensível aos autos do Agora, passa aos leitores aspectos de inesquecível beleza e encantamento, resgate e presença textual que se fazem imprescindíveis, em nossos tempos açoitados por inundações de violência e vulgaridade. No jornal Diário da Manhã, onde escreve todas as sextas-feiras (?) Hélio Moreira vem publicando crônicas de leitura amena e saborosa. Uma coletânea delas aqui está, neste volume intitulado “Deixe-me contar enquanto me lembro”, em boa hora incluído na terceira edição da coleção Goiânia em Verso e Prosa.

De fato, quem tiver o privilégio de ter em mãos este livro, e se der o prazer de o ler, haverá de deliciar-se com narrativas, causos, rememórias amoráveis à lembrança – a partir do capítulo intitulado Santa Tereza, onde desfilam lembranças de grande ternura e lirismo, em que figuram seus filhos e netos, em sua bucólica pasárgada aparecidense. São igualmente de saborosa leitura as histórias voltadas para Gaspar Lopes, sua cidade natal. Tocam os nervos da sensibilidade (algumas provocam risos) as narrativas sobre sua aldeia da infância, de avultada importância, por distar apenas oito quilômetros de Alfenas.

Tempos nostálgicos e saudosos, em que partidas de futebol mobilizavam corações e mentes, em perene rivalidade, em que, para vencer, tudo valia, até mesmo a insinuação de outras bolas que não o balão de couro objeto das caneladas e pontapés. Tempo memorioso e tranqüilo, em que um marquês não havia mandado buscar cem dúzias de avenidas, para expulsar de vez/ as margaridas/por não ter filhos/por não gostar/ou talvez/por mania de mandar/” (evoé, mestre Sivuca!). Tempo ingênuo e brejeiro, em que xingar uma moça de “senhorinha” era o mais terrível xingamento que se poderia perpetrar.

Distância intangível, entre Gaspar e Alfenas, que não é mais, e nem “menas” que a da imaginação – cabendo este “menos” conforme prefere nosso retumbante presidente, que prefere o sacrifício de fazer uma hora de esteira a ler de um livro uma página inteira Afinal, depois que o tempo passa tudo a raso, o longe e o perto pertencem ao reino da fantasia, a mesma que faz toda criança ver o riacho onde se banha como o maior rio do mundo, e o quintal onde brinca a maior fazenda de todo o planeta. Hélio Moreira relata sua decepção ao retornar às paisagens de Gaspar Lopes – o rio da sua aldeia não era o maioral de toda a terra – nem morro, serra, morraria, na serra da Rola Moça, ou em suas cercanias – tudo fica menor quando a pessoa cresce e se distancia no tempo e na lembrança daquilo que, eternamente passando nos rios do tempo, não volta jamais. Como diz a bela canção da MPB: “O tempo/não para no porto/não apita na curva/não espera ninguém/”.

A leitura amena e atenta das crônicas desta seara de memórias deixa uma sensação de querer mais – tal o lirismo, o equilibrado senso de humor e a comovente ternura impregnados nas palavras deste agricultor de lembranças – em que entram os acontecidos da História, personalidades humildes ou famosas, que marcaram o seu tempo, ou desapareceram sem deixar maiores marcas, a não ser na memória dos que os conheceram. Algumas pitorescas ou humorescas, inscritas na seção “Fatos e leréias regionais”, para meu gosto, uma das melhores de todo este livro.

Hélio Moreira reservou para o capítulo IV as reflexões sobre personalidades e feitos da história brasileira e mundial. Nesta seção há textos imperdíveis, que chamaram a atenção, nas páginas do DM, pelas qualidades do cronista, de abordar temas sisudo, mas com uma visada pessoal, não destinada a meramente recontar o sabido, vício de muitos escribas engomadinhos, ostentando estrelas de xerifes da literatura, criticocratas de plantão, ou compiladores sem opinião própria. Aspectos insólitos ou dramáticos surgem de seus relatos, envolvendo personalidades como a solteirice de Olavo Bilac, John Steinbeck e a magia do poder das mulheres, incoerências de Lênin, o líder contestado, bem como a história de um amor quase impossível, entre Hannah Arendt e Martin Heidegger.

Sendo este “prefácil” um enfeite dispensável, pois que o livro de Hélio Moreira não precisa de meu aval, podendo caminhar sozinho, vou dando os trâmites por findos. Felizes os que se dispõem a contar as gentis histórias de suas vivências e leituras. Felizardos os leitores, que nesta nave de palavras irão fazer viagens inesquecíveis!

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor