“Bacurau”: No vácuo, o povo assume
Com o olhar centrado nas eternas manipulações políticas brasileiras, a dupla Mendonça Filho/Dornelles põe o espectador diante do inevitável.
Publicado 17/09/2019 10:50
No desfecho deste premiado “Bacurau”, a dupla pernambucana Kleber Mendonça Filho (04/12/1968) e Juliano Dornelles (1980) inverte as posições entre explorados e opressores. E com tal fúria que o espectador é levado a indagar se, de repente, a decisão não veio tarde. Não de forma explícita, pois a estruturação dramática, centrada numa trama de filme de ação, pôs de um lado o vilão e seus capangas e de outro os moradores do vilarejo do sertão pernambucano. O que lhe permite construir o violento choque num crescendo pelas matas, ruas e casas até chegar ao inesperado.
A dupla, ganhadora do Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 2019, constrói toda a narrativa de modo diverso dos clássicos nacionais sobre a miséria e a exploração do sertanejo nordestino. O mais emblemático é o clássico “Vidas Secas” (1963), do cineasta paulista Nelson Pereira dos Santos (1928/2018), baseado na obra-prima do escritor alagoano Graciliano Ramos (1892/1953). Mesmo assim estão lá o sertão, a falta d´agua e a vida miserável. Embora, a ação transcorra no “meio urbano”, a dupla não deixa de matizar o eterno sofrimento e a falta de perspectiva.
O tema central aqui é a disputa política pelo controle do vilarejo Bacurau, no agreste
pernambucano, e como os conflitos se entrelaçam. Logo na primeira sequência da narrativa, a câmera da dupla se detém no caminhão-pipa, dirigido por Erivaldo (Rubens Santos) a levar de carona a amiga Tereza (Bárbara Colen). Não são as más condições da estrada que dificultam a viagem, mas as inesperadas chantagens. E gera mistério e suspense. O caminhão-pipa é o símbolo do novo, da rapidez e da eficiência no abastecimento d´agua no sertão. Atacá-lo é provocar o horror e a sêde.
Objetivo é privatizar o abastecimento d´agua
Assim quem controla a água detém o poder em Bacurau, no agreste pernambucano e, inclusive, em todo Nordeste. Percebe-se, sem grande esforço, porque a canalização do Rio São Francisco sofre todo tipo de boicote, protelação e falta de recursos. O objetivo é privatizar todo o sistema de abastecimento d´agua do Brasil. E transformá-lo em lucrativo negócio para as empresas privadas e dor de cabeça para as famílias, os agricultores familiares e as pequenas fazendas devido às onerosas contas. É o que se vê no ótimo documentário do cineasta chileno Daniel A. Rubio “O Verde está do outro lado (veja critica deste colunista, no Vermelho”.
Mas é na transição da primeira para a segunda parte da narrativa que a dupla Mendonça Filho/Dorneles deixa o espectador antever o que está em disputa neste “Bacurau”. Dois fatos o elucidam: I – O falecimento da matriarca e líder afro do lugarejo aos 94 anos. Apenas ela detinha poder bastante para ser ouvida pelos moradores e as autoridades do município de Serra Verde; 2 – A tentativa do jovem prefeito Tony Júnior (Tardelly Lima) obter o apoio da comunidade para sua reeleição. É em meio estas indefinições que a narrativa se amplia em leque, sem antecipar soluções.
É quando a Dupla deixa fluir o eixo central da narrativa sem perder o controle da história. A começar pela magistral introdução do personagem a ditar os conflitos-políticos na cidade de Serra Verde. Tony Júnior surge como o anjo anunciador da boa-nova, mas logo se torna um bruxo. Não por suas intenções, mas pelo modo como, ao invés de anunciar o belo presente para os estudantes e os leitores do lugarejo, ele o transforma numa encenação surrealista e desrespeitosa. E ninguém saiu para o expor ao ridículo e mostrar sua falta de sensibilidade como prefeito da cidade.
Plinio dialoga com seus alunos e os moradores
Sem ser anunciado, ele surge de repente na rua diante da escola municipal. E sem microfone se limita a descarregar o carrinho lotado de livros para os alunos do Iº grau. Fica lá o monte de obras que não deve ter custado pouco aos cofres públicos pelos quais ele é o responsável. Não bastasse ainda se entregou à mea-culpa digna de “autoridade” sem sensibilidade política para se dirigir aos seus eleitores. “Sei que tivemos algumas diferenças, mas estou aqui para cuidar de vocês”. A sequência é antológica e reflete os tempos atuais ao mostrar que ele perdeu o tirocínio.
A partir daí a dupla Mendonça Filho/Dorneles estabelece o contraponto para o espectador atentar para a disputa política-eleitoral em Serra Verde. Como ocorre nestas ocasiões quem preenche o espaço deixado pela matriarca é seu filho Plinio (Wilson Rabelo). Professor e liderança em ascensão, ele cativa pelo modo como dialoga com seus alunos e notadamente sua brilhante intervenção ao mostrar a contribuição de sua família, na qual surgiram médicos, engenheiros e professores. Fato ainda mais significativo por serem afros-descendentes. E desta forma contesta os que lhes negam oportunidade na vida por terem a pele negra.
A oposição de Plinio põe Tony Júnior diante de um dilema: sua eleição não está garantida. Não basta mais surgir durante a campanha eleitoral e distribuir alguns presentes e fazer algumas promessas para ter os votos que lhe garantirão novo mandato de quatro anos. O pós-Constituição Federal de 1988 e os anos de democracia-popular 2002/2016 engendraram a consciência-cidadã. Mesmo que hoje esteja ameaçada pelos rompantes antidemocráticos de Bolsonaro e bolsonaristas. E assim o voto de cabresto se foi deixando ao povo o direito de escolher o seu representante nos três níveis de Estado pelo voto livre e direto.
Dupla não repete os filmes de ação
É toda a estrutura que substitui os antigos coronéis e latifundiários, que acumulavam as funções de chefe-político. E, além disso, controlavam os votos de seus lavradores e de suas famílias ou de seus apaniguados. A dominação perdura, mas mudou a forma de controle. Ao expor o personagem que sintetiza a exploração do cidadão comum no Terceiro Milênio, a dupla Mendonça Filho/Dornelles o faz configurando o escárnio e o desrespeito com que Tony Júnior trata os jovens, moradores e eleitores de seu município. Eles não são obrigados a reelegê-lo. É justa punição!
A partir da segunda parte deste “Bacurau”, o espectador entra numa espiral de violência, centrada em motivações submersas. O agreste pernambucano construído pela Dupla durante as filmagens entre março e maio de 2018 no sertão do Seridó, no Rio Grande do Norte, reflete a nova realidade. Não são mais os lombos de burros e jumentos, carabinas e facões que se impõem. Chegou a vez dos modernos caminhões-pipa, motos velozes, drones, celular, GPS, metralhadoras e caminhonetes. Daí o combate desigual entre os que tentam se firmar em meio à cruel desigualdade e os novos donos do poder centrados no grande capital e nas facilidades neoliberais, como as vistas no Governo Bolsonaro.
Mas não só isto, Mendonça Filho e Dornelles tiveram o cuidado de não repetir clássicas construções dramáticas. Com extremo cuidado invertem a estruturação narrativa do cineasta japonês Akira Kurosawa (1912/1998), em seu clássico “Os sete samurais (1954)”. Neste, os pobres agricultores que viviam tendo sua colheita roubada pelos bandoleiros contratam um grupo de samurais para defendê-los. Kurosawa coreografa os confrontos como se tratasse de balé. E a violência termina sendo ritualística não frontalmente sangrenta. Portanto, os agricultores tiveram ajuda de fora para não serem transformados em escravos dos ladrões.
Há sobretudo uma história bem contada
A inversão introduzida pela Dupla foge à história encenada por Kurosawa há 65 anos. Quando cerco se forma ao redor de Bacurau apenas alguns quadrilheiros, como Pacote (Thomaz Aquino) e Lunga (Silvero Pereira) se aliam a eles. Liderados por Plínio, logo encontram a forma de se defender dos ataques dos drones. Em princípio a desigualdade é brutal, diante dos homens do cruel alemão Michel (Udo Keir/14/10/1944). Porém o aprendizado se dá na luta travada com eles. São homens e mulheres treinados para correrem riscos extremos e serem frios ao liquidar o inimigo. E, em sendo assim, eles respondem à altura para ficarem vivos.
São brilhantes sequências de ação em meio ao matagal ou em confrontos rigorosamente encenados para não parecerem meras lutas montadas na sala de edição. E há, sobretudo, uma história bem contada em imagens que deixam o espectador preso à tela. A iluminação e a fotografia Pedro Sotero não são apenas para registro, elas assumem as cores do agreste e realçam o clima e a tensão. Bacurau é um filme de grandes planos em espaços abertos que ajudam o espectador a dimensionar as dificuldades dos moradores de Bacurau ao enfrentar os comandados por Michel.
É no desfecho que toda a construção dramática-narrativa de Mendonça Filho e Dornelles surpreende neste “Bacurau”. Simplesmente por levar em conta a velha regra do combate desigual. Quando o inimigo já se considera vitorioso acaba deixando ao ameaçado a escolha da arma para se defender e onde se dará o confronto. E como sempre nos filmes de Kleber Mendonça Filho, a exemplo de “O Som ao Redor (2012)”, o desfecho é de grande impacto e de uma criatividade avassaladora. De repente há o estrondoso disparo que põe em destaque a curtida vingança. Agora, não, a punição é tão contundente que o espectador estremece.
Grupo de Michel foi contratado nos EUA
Não se vê tão só o acerto de contas quando, afinal, o grupo de Michel, contratado a peso de ouro nos Estados Unidos, entra em confronto aberto com os moradores de Bacurau. Entende-se desde o início deste desfecho que a ação estruturada pela Dupla é a um só tempo ditada pela ação, mas, principalmente pela temática política. Não estão apenas defendendo seu vilarejo, mas, exclusivamente seu direito de encontrar saída para seus próprios impasses políticos. E assim chegam ao ponto de fazê-lo através da defesa de seu direito de contestar quem o explora, o ludibria e mente.
Em clara exposição é o povo chamando a si a responsabilidade por sua vida presente e futura. Mesmo que tenha de enfrentar ao custo de ir ao combate e usar do extremo ataque para que o inimigo não mais o ameace. Enfim, “Bacurau” deixa a lição: não me engane, o poder popular é soberano. A exploração, a ameaça, o terror e a ditadura não nos vencerão. Em suma um filme brilhante, sem discurso ou tendência à ação pela ação. Deixa o povo resolver seus impasses, mesmo que tenha de penar um pouco e aprender com seus próprios fracassos. Também ele atinge a maturidade.
Bacurau. Brasil/França.132 minutos. 2019. Drama/ação. Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 2019 . Equipe técnica: Música: Mateus Alves, Tomaz Alves Souza. Montagem: Eduardo Serrano. Fotografia: Pedro Sotero. Roteiro/direção: Kleber Mendonça Filho/Juliano Dornelles. Elenco: Sonia Braga, Udo Kier, Barbara Colen, Thomás Aquino, Silvério Pereira, Karine Teles, Thardelly Lima, Wilson Rabelo.