“Bastardos” Como na realidade

Em história sobre tráfico de adolescentes, chantagem e falência de empresa, cineasta francesa Claire Denis desvenda o submundo empresarial

O espectador acostumado às tramas da cineasta francesa Claire Denis (Paris,1948) não deve se surpreender com a trama obscura, entrecortada, cheia de eixos e fios que não se fecham deste “Bastardos”. É um cinema que revolve a realidade, mostrando-a sob ângulos inusitados. Como a trama macabra eivada de vampirismo, canibalismo, sexo e violência de “Desejo e Obsessão” (2001) ou o submundo do crime, das brigas de galos e de homens no policial “Dane-se a Morte” (1990). É sempre cheio de armadilhas.

Neste seu último filme, co-roteirizado por seu parceiro habitual, Jean-Pol Fargeau, ela retoma vários de seus temas, dentre eles a degradação humana, a exploração sexual e a decadência moral do universo burguês. Este é o centro desta narrativa com dois eixos centrais e fios que desorientam o espectador. Ela intercala entrechos, mesclando presente e passado, às vezes em off, sem decantar sequências. Salvo os personagens dos eixos centrais, os demais não fazem ligação entre as tramas, como se pertencessem a histórias separadas.

Denis e Fargeau apenas pegaram uma história linear e inverteram as sequências, pois a narrativa seria comum caso não o fizessem. É um filme, portanto, de montagem, de deixar ao espectador a estruturação do quebra cabeça. E por ser sintetizado desta forma: empresário endividado suicida, sua mulher e sócia chama o irmão-capitão de navio para socorrê-la. Ele encontra a empresa falida,
a sobrinha entregue à exploração de adolescentes e apaixona-se pela mulher de milionário suspeito.

Empresa foi mal administrada

O interessante desta história é como Denis estruturou os dois eixos centrais e os fios. Um deles é centrado no capitão Marco Silvestre (Vincent Lindon) e em sua irmã-empresária Sandra (Julie Bataille), o outro no triângulo amoroso Marco, o milionário Edouard Laporte (Michel Subor) e a mulher deste Rafaelle (Chiara Mastroianni). Os fios se ligam a eles através da sobrinha de Marco Justine (Lola Creton) e do médico (Alex Descas). Mas de forma invertida, pegando pelo final, voltando ao início, avançando para o meio. Sandra contribui para o entendimento ao explicar porque sua empresa faliu e Justine caiu na rede do tráfico de mulheres. E o espectador atento logo entende por que.

O que ela tenta explicar a Marco é apenas a consequência de sua inabilidade administrativa. “Vocês não cuidaram do produto, os modelos estão velhos”, aponta ele. Então sua barganha com quem lhe emprestou dinheiro, embora explique seu ato não o justifica. A busca de Marco torna-se, assim, mais uma questão moral. Mergulha no submundo da prostituição, do tráfico de mulheres e das perversidades sexuais. A sequência de Justine indo nua a esmo pelas ruas de madrugada, iluminada pelo neon das marquises, sintetiza a degradação a que foi submetida. Porém, ela é apenas vítima.

O segundo eixo central, o do triângulo amoroso serve para mostrar o quanto a dualidade permeia a estrutura sócio-familiar burguesa. Ou seja, a dupla vida do respeitável milionário, Laporte. É de um lado o maníaco sexual, frequentador de ambientes sórdidos, de outro o pai de família apaixonado pela mulher Rafaelle e o filho Jacques. Entre eles se interpõe Marco, o suposto herói do filme. Mas, em se tratando em filme de Denis, inexiste o mocinho. Daí, Marco não atentar para o instinto materno de Rafaelle, com a qual se envolve. Ignora, inclusive, a armadilha montada pelo traído Laporte.

Marco não percebe o ardil de Laporte

Denis joga com a “esperteza” de Marco para ludibriar Laporte, numa espécie de vingança. Porém, em seu ardil há buracos demais, fáceis de desvendar. O vilão, mais sensível do que ele, logo os identificam. Denis mostra a chegada de Laporte com a criança, Rafaelle entrando em pânico, por medo de ele lhe tirar o filho. Marco é pego duplamente de surpresa. A solução de Denis é engenhoosa. Não se trata, é claro, de trama hollywoodiana. De punição do “vilão”. Rafaelle, entre perder o filho e ficar com Marco, toma outra decisão, o que choca o espectador. Ilusão imposta pelo clichê hollywoodiano que sempre encobre a decadente moral burguesa.

Nela, o “herói” deve sempre triunfar. Nada que arranhe a estrutura capitalista. É como se Denis, ao expor sua visão, dissesse: nem sempre vence o mais ético, existe um subtexto: no universo burguês as trocas nunca são limpas. Laporte exigiu a devolução de seu empréstimo não em espécie, mas na forma de uso de sexual. E o instinto de mãe de Rafaelle é mais importante que a vingança moralista e utópica de Marco. Pode não ser o ideal, mas é o real.

Talvez se devesse condenar Denis e Faveau por embaralhar os entrechos, invertendo a ordem das sequências, mas não é o caso. É sempre bom tirar o espectador do mastigado. Cinema é complexo e serve, sem dúvida, para mudar a pirâmide. Quanto mais invertida melhor.

Bastardos”. (“Bastards”). Drama. França/Alemanha. 2013. 83 minutos. Musica: Tindersticks. Montagem: Annette Dutertre. Roteiro: Jean-Pol Farveau/Claire Denis. Direção: Claire Denis. Elenco: Vincent Lindon, Chiara Mastroianni, Julie Bataille, Michel Subor, Lola Creton.

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