“Bella”: Saindo pela tangente

Diretor mexicano Alejandro Gómez Monteverde monta quebra-cabeça sobre fracasso, culpa e redenção e põe no meio, frouxa discussão sobre o aborto.

Nos últimos anos assistir a produções mexicanas tornou-se obrigatório para quem gosta de obras bem elaboradas, cheias de surpresas e frescor. Muito distante da época em que filme mexicano era símbolo de dramalhão, emoções derramadas e lágrimas em profusão. Nem todos, a exemplo dos filmes de Emilio Fernandez, como “Maria Candelária”, justificavam esta classificação pejorativa, pois representavam uma etapa histórica em que as relações amorosas se traduziam no machismo, na vingança e na dor simplesmente, traduzindo, assim, as relações sociais do país nas décadas de 30, 40 e 50. Hoje, no entanto, o que se vê na tela são filmes que elucidam as contradições mexicanas, iguais a “Amores Brutos”, de Alejandro González Iñarritu, sem perder de vista sua identidade cultural. Mas é neste “Bella”, de Alejandro Gómez Monteverde, que as influências do cinema mexicano ficam mais evidentes.


 


 



“Bella” é daqueles filmes que estabelecem desde o início uma empatia com os personagens. O faz através da música, da canção que envolve o espectador, e apresenta José (Eduardo Verástegui), como alguém de quem devemos gostar, sem, no entanto, torcer por ele. A salsa, cantada em voz doce e ritmada, nos lembra que se trata de um filme latino, embora tenha Nova York, como cenário. E vai nos revelar; a conta-gotas, o que transformou José, de craque de futebol em ascensão, em cozinheiro do restaurante elegante de seu irmão Manny (Manny Perez).  Mas também como a garçonete Nina (Tammy Blanchard), ao descobrir que está grávida; muda de idéia e satisfaz ao desejo de José de se redimir da tragédia que o acometeu. Embora marcado pela música e pela tragédia, Monteverde não agrega a seu filme o terceiro tópico desse vértice: a paixão desbragada entre José e Nina. A relação entre eles é cândida, quase inexistente. É dominada mais pela solidariedade que pelo amor.


 


 


Personagens têm forte empatia com o público


 


 


Além deste senso de solidariedade, os personagens de “Bella” transbordam afetividade e carinho uns pelos outros, o que termina por contaminar o espectador. Em algum momento da narrativa, a ação se desdobra no passado, no presente e no futuro, para esclarecer o comportamento do personagem. É quando José está com Nina no hospital e ela lhe conta porque decidiu abortar o fruto de uma relação indesejada. E ele tenta, sem que Monteverde se prolongue no diálogo, dissuadi-la dessa intenção. Então, através de flashbacks percebe-se algo estranho no comportamento dele: José não está apenas tentando convencê-la a não abortar, procura também reparar algo que lhe aconteceu antes. Ela, por seu turno, depois de revelar a razão de seus atrasos e faltas constantes ao trabalho, não tem a quem recorrer. Estão ambos às voltas com algo maior do que eles e terão de amparar um no outro.


 


 


Ao se identificar um com o problema do outro, eles abrem caminho para compreensão das relações deles com Manny, patrão de ambos. Manny os trata com autoritarismo, ignorando suas contribuições e dilemas. Ao se amparar um no outro, procuraram também reagir às imposições patronais. José, irritado com os gritos e exigências do irmão, enfrenta-o em seus próprios termos. É o único momento em que os problemas dos imigrantes mexicanos vêm à tona; com José gritando que ele, Manny, não paga a seus empregados o que lhes é devido. Uma espécie de luta de classe ditada não pela relação entre irmãos, mas entre patrão e empregado. E José fala agora não como irmão, sim como cozinheiro que vê ao seu redor as rígidas condições impostas por Manny a seus empregados. Noutros instantes, este viés social cede lugar às relações familiares, à cordialidade, às discussões, reprimendas e o barulho feito normalmente pelos latinos. E a família de José se expõe aos olhos de Nina, dando-lhe um sentido de unidade que ela, fruto da sociedade americana, anglo-saxã, não teve.   


 


 


Mexicanos de “Bella” progrediram nos EUA


 


 


Com este passar de olhos pela realidade mexicana de classe média, Monteverde mostra outro tipo de imigrante: aquele que progrediu, mas não se integrou cultural e politicamente à sociedade americana. O pai de José numa longa seqüência se recusa a falar inglês com Nina Sharon, típica estadunidense. Apenas sua mãe se desdobra em explicar porque o marido age daquela forma. Mesmo comportamento tem seu irmão Eduardo, que critica José por ouvir música americana, dizendo preferir Perez Prado, o músico cubano (“El Rey Del Mambo”). Este entrecruzar cultural, de raízes, se dá entre risadas e uma mesa farta de comida mexicana, enquanto José e Nina tentam traçar planos, que não se completam, diante da idéia de ela abortar. Uma idéia não reforçada por Monteverde, pois flutua ao longo do filme, sem uma profunda discussão entre os dois jovens. Nina quer, José se opõe sem forçá-la, deixando a decisão a seu cargo. Monteverde usa elipses, cortes de Nina entrando no consultório da clínica, acompanhado pela enfermeira, José solitário esperando-a. O espectador fica cheio de dúvidas.


 


 


Numa época em que o Vaticano de Bento XVI insiste em trazer de volta o conservadorismo pré-anos 60, “Bella” pode ser tratado como filme anti-aborto. Nina, num de seus momentos de indecisão, diz a José que não pode ter a criança. Monteverde corta para o quarto onde ela vive, como se justificasse sua posição.


 


 


Não retorna à cena que desencadeou a idéia. Passa-se à seqüência seguinte, que, aparentemente não tem relação com a anterior. É como se ele, Monteverde, quisesse jogar a decisão para Nina. Um entrecho, porém, procura estabelecer os elos necessários: a decisão cabe a José. É ele que procura a redenção, Nina quer apenas sobreviver. Vai lhe custar muito cuidar de uma criança e trabalhar. José, não, pode voltar  ao restaurante do irmão, em outras circunstâncias.


 


 


Segundo diretor uma vida irá repor a outra


 


 



Estas opções são apontadas sutilmente por Monteverde. José busca com afinco uma forma de reparar a tragédia que o acompanha. Uma forma de dizer também que uma vida irá repor a outra. Este é, na verdade, o centro do filme. Alguém se sente atormentado por algo que lhe aconteceu e tenta amenizá-lo através da ação de outra pessoa. E fará tudo para convencê-la, ainda que seja feito sem ligação afetiva alguma. Em “Bella” há, então, uma transferência de interesse: do aborto para a redenção de José. A ficção tratando de tema candente da modernidade sem adentrar à discussão de sua validade ou não. Uma forma encontrada por Monteverde para sair pela tangente, sem causar polêmica, mas que, no fundo, poderá agradar mais aos segmentos anti-aborto, com a justificativa de que a redenção de José representa também o triunfo da vida.


 


 


Monteverde estabelece vários contrapontos para chegar a este ponto. Num deles por meio da seqüência que elucida a tragédia vivida por José, de forma chocante, jogando com a emoção do espectador; noutra numa seqüência-solo de Nina, quando ela conta a José sua relação com a mãe. São dois seres de formação cultural adversa, unidos pelo fato social, das relações patrão-empregado: o moto aqui é o social desencadeando fatos que irão influir na vida de José e Nina. As duas seqüências, altamente emocionais, põem o espectador no centro do filme. Ele, no entanto, não percebe para onde Monteverde o quer levar.  As elipses, o desmontar das seqüências, o faz perder o fio para, de repente, o retomar adiante.  As ligações com o dramalhão não se configuram. São apenas insinuações, grandes discussões sobre a validade ou não do aborto não se dão, enfim. Fica-se com a sensação de que toda a trama foi armada para que José repusesse a vida que devia. E a questão do aborto, então, fica apenas como entrecho.


 


 


Em sã consciência: o tema é por demais sério  para ser tratado como saída dramaturgia, apenas.


 


 


 


“Bella” (Bella), Drama. México/EUA. 2006. 91 minutos. Roteiro/direção: Alejandro Gomez Monteverde. Elenco: Eduardo Verástegui, Tammy Blanchard, Manny Perez.  

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