Bento XVI e os Muçulmanos

Não bastasse vivermos em um mundo bastante conturbado, o Papa Bento XVI, deu sua contribuição para complicar ainda mais as coisas. Nem bem ainda ele se consolidou em seu recente papado, declarações dadas em uma palestra proferida em sua terra natal (na Un

Todos sabem que Joseph Ratzinger (nome de batismo do Papa atual), é um dos maiores intelectuais da Igreja Católica no mundo. Era, sob o papado de João Paulo II, uma espécie de mentor intelectual da ação da Igreja, de sua ideologia, pois presidia a poderosa Sagrada Congregação da Fé, uma espécie de Santo Ofício do Vaticano. Suas opiniões sempre foram polêmicas, além de extremamente conservadoras.


 


O pomo da discórdia


 


No final da semana que passou, Bento XVI fez uma citação, de um antigo imperador Bizantino, chamado de Manuel 2º, o Paleólogo, Imperador que governou o Império entre os anos de 1391 a 1425 (séculos XIV e XV). Trata-se de uma frase supostamente proferida pelo imperador, de crítica ao Islã como religião e feita em um momento histórico que os turcos preparavam-se para tomar de assalto a cidade de Constantinopla, sede do Império (o que viria a ocorrer apenas depois da morte de Manuel). Era um debate que o imperador fazia com alguns interlocutores e disse literalmente o seguinte: “todas as coisas que Maomé trouxe foram más e desumanas, como a sua ordem para espalhar pelo medo da espada a fé que pregava”. Ao citar essa frase infeliz cunhada há mais de 600 anos, o Papa acabou por endossar críticas que a religião islâmica sofre desde a sua fundação por Maomé, de que é uma religião “guerreira”.


 


Ao dizer isso, alguns líderes islâmicas interpretaram que Bento XVI estaria dando a senha para que se iniciasse uma espécie de nova cruzada contra o Islã, o que causou revolta e protestos em todos os países islâmicos. De fato, logo depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, Bush cunho essa frase, ao dizer algo como “vamos fazer uma cruzada contra o terrorismo”, relembrando as cruzadas cristãs que invadiram o Oriente Médio, massacrando centenas de milhares de pessoas entre os séculos XI e XIII, que deixou até os dias atuais muitas seqüelas e feridas não cicatrizadas.


 


Essa citação de Manuel 2º, fora feita exatamente alguns dias depois de ter assumido o Império, em 1391. Ele havia fugido de uma prisão turca e ficara sitiado durante vários anos pelos otomanos. O seu reinado fora feito sob cerco dos exércitos turcos e no final de sua vida, acabou tendo que assinar um humilhante tratado, para pagar pesados tributos ao sultão otomano. Assim, ao criticar o Islã, Manuel 2º guardava mágoas de um momento histórico particular.


 


O pano de fundo nem é tanto o debate se o Islã é uma religião guerreira e se Maomé mandou mesmo que seus seguidores saíssem aos quatro cantos do planeta para converter pela força das armas os fiéis do mundo todo. A polêmica mais central aqui é se uma determinada religião é superior à outra. Esse episódio demonstra que Ratzinger esta disposto a comprar uma briga polêmica e mexer com um dos maiores dogmas entre religiosos de várias confissões: pode-se falar de tudo, de todos os temas que se queira entre as religiões, mas os dogmas dos textos sagrados de cada religião não se falam e um não da opinião sobre a outra. Bento XVI mostra a que veio: vai meter a sua colher nesse debate e poderá querer defender a superioridade do cristianismo sobre todas as outras religiões e outras confissões existentes no mundo (1). Tudo indica que o tal ecumenismo, tão caro a João Paulo II, esta fadado ao esquecimento sob o papado de Bento XVI.


 


Se isso for mesmo dessa forma, como alguns analistas têm observado, é um mau sinal. Até porque devemos sempre respeitar as religiões dos outros, procurar ouvir, analisar, mas fundamentalmente, respeitarmos outras formas de expressão do sagrado. Quando defendemos a mais ampla liberdade de consciências, nós o fazemos com a segurança de que é muito mais democrático e amplo defendermos isso do que a simples “liberdade religiosa”. Devemos expressar nossa liberdade para crer e para também não crer. E se cremos, devemos fazê-lo dentro de nossa intimidade de forma que essa crença não oprima outras pessoas que pensam forma diferente. Esse assunto foi polêmico na França que, recentemente, proibiu em todas as escolas públicas, qualquer uso de símbolos religiosos de forma ostensiva (especialmente o shador islâmico e o quipá judaico).


 


O sentimento de culpa do Papa


 


Não passou sequer dois dias da frase polêmica e lá veio novamente Bento XVI à público. Só que desta vez para dizer que estava profundamente “sentido” com o que tinha dito, mas que nunca fora sua intenção ofender muçulmano algum em qualquer lugar do mundo. Não pediu, porém, desculpas alguma a ninguém.


 


O Papa divulgou uma nota oficial pela assessoria de imprensa do Vaticano, na qual diz que a citação que ele fizera de Manuel 2º não era a sua opinião pessoal, mas dizia ainda que a “violência era incompatível com a natureza de Deus”, em uma crítica bastante direta ao que o Ocidente tem interpretado como uma “guerra santa”, a Jihad Islâmica (já tratamos disso em artigos anteriores e não vamos hoje abordar essa questão, mas Jihad para os muçulmanos nada tem a ver com guerra, mas sim com um “esforço, sacrifício pessoal” para se aproximarem de Deus).


 


Não tenho procuração alguma para fazer a defesa do Papa, até porque tenho muitas críticas ao seu posicionamento político e mesmo religioso. No entanto, tenho acompanhado a evolução de seu pensamento e acho que ele ainda vai surpreender na sua ação, de linha mais voltada para dentro de sua religião, como se diz de linha “pastoral”. Diversos teólogos da linha da “libertação” no Brasil e mesmo o mais famoso de todos eles Hans Kung, que fora até punido por João Paulo II, tem expressado opiniões positivas, ainda que contraditórias sobre esse novo Papa.


 


No caso específico da declaração polêmica, até acho que a citação não fora feita no sentido de uma ofensa à religião islâmica. No entanto, acho que poderia caber um pedido formal de desculpas para não deixar dúvida alguma sobre a sua intenção (acho, pessoalmente, que ele acabará fazendo isso). No entanto, o tal diálogo inter-religioso deverá estar com os dias contados sobre o papado de Bento XVI.


 


Do lado dos muçulmanos, também compreendo o seu sentimento. A mídia internacional já apresenta os seguidores de Maomé com o estigma de terroristas e são discriminados no Ocidente (como se pode ver em diversos filmes de Hollywood). No entanto, devem também evitar confrontos com os cristãos. Em alguns locais Igrejas chegaram a ser apedrejadas e uma freira foi morta. Não acho que essa violência possa ajudar a busca do diálogo e a paz no mundo. Até porque o inimigo maior de todos os povos, de cristãos e muçulmanos é o imperialismo norte-americano corporificado hoje na pessoa de George W. Bush.


 


Sabemos que existem divergências e diferenças profundas entre essas duas que são as maiores religiões monoteístas do mundo. Se por um lado para os cristãos Jesus é filho de Deus e suas palavras são as palavras divinas (ainda que escritas por seguidores que não o conheceram e o fizeram décadas depois de sua morte), por outro lado muitos cristãos duvidam que as frases contidas no Alcorão sagrado reflitam exatamente a palavra de Deus, ou pelo menos que a divindade não teria dito diretamente isso aos árabes da península arábica, através de Maomé, considerado o mensageiro de Deus.


 


De fato, não vamos aqui entrar nessa polêmica, que é religiosa e como dissemos, devemos respeitar todas as correntes, tendências e opiniões de todas as confissões. Se for verdade mesmo que Deus teria tido um filho e que este fora enviado aos “homens” como seu emissário, porque não poderia ser verdade que esse mesmo Deus, dos judeus e dos cristãos, agora enviasse um outro emissário para falar aos mesmos “homens” de fé, desta vez usando o arcanjo Gabriel, como rezam os textos corânicos? Acho que é um puro imperialismo cultural crer em um texto sagrado e não crer em outro.


 


Se essa polêmica tomar um rumo inesperado e mesmo de for acirrada por uma eventual inabilidade ou incapacidade do novo Papa de se desculpar perante a comunidade muçulmana mundial, composta de mais de 1,2 bilhão de fiéis, as coisas podem ficar ainda mais tensas do que já estão. No entanto, não poderemos aceitar movimento algum que possa vir a se caracterizar como uma nova cruzada, de caráter anti-islãmica e racista e discriminadora.



Nota



(1) Ver opinião de Vera Gonçalves de Araújo, publicada em O Globo, sob o título “Crise com Islã revela estilo de pontificado de Bento XVI”, no dia 17 de setembro de 2006, domingo, página 49.

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