Boa arte, consenso e política
A leitura de instalações artísticas por parte do grande público e as possíveis reflexões provocadas pela obra “Diva”, de Juliana Notari.
Publicado 07/01/2021 18:54
No livro ‘Arte como terapia’, os filósofos Alain de Botton e John Armstrong estressam com delicadeza um tema tão antigo quanto a fruição da vida por meio da experiência artística. Num papo descontraído, percorremos pouco mais de 200 páginas com lições sobre as funções da arte para o público disposto a apreciá-la.
De imediato, os autores defendem que um certo discurso que se esquiva de encontrar funções, a fim de manter um status de mistério às obras de arte é justamente o que as colocou num patamar vulnerável. Essa herança do stablishment artístico, que desde o começo do século 20 se recusaria a responder para que serve, teria nos distanciado da arte e nos embotado para a contemplação estética.
Os autores também pensam um pouco sobre como se constrói o cânone, arte cujo prestígio ultrapassa gerações. Dizem: “As ideias sobre boa arte não se formam sozinhas. Resultam de sistemas complexos de patronato, ideologia, dinheiro e educação, os quais são mantidos por museus e cursos universitários, que orientam o senso do que torna uma obra especialmente digna de atenção. Com o tempo, isso vira mero senso comum.”
Com o intuito de orientar o leitor, Botton e Armstrong estabelecem alguns critérios para o julgamento da obra de arte: leitura técnica; leitura política; leitura histórica; leitura do caráter contestador e leitura terapêutica. É importante frisar que essa espécie de manual está voltada para o público comum, não se tratando de regras para a formação uma de crítica de arte especializada.
As questões levantadas pelos filósofos talvez possam nos ajudar na leitura da obra ‘Diva’, uma vulva de 33 metros de altura, 16 metros de largura e 6 de profundidade, instalada no parque artístico-botânico Usina da Arte, localizado no município de Água Preta, em Pernambuco.
No terreno onde a escultura foi instalada funcionava uma antiga usina de açúcar, falida nos anos 1980. A ideia de transformar o lugar num parque-artístico inspirado no Inhotim de Minas Gerais partiu dos proprietários Ricardo e Bruna Pessoa de Queiroz.
Concebida pela artista plástica pernambucana Juliana Notari, ‘Diva’ foi inaugurada ainda no final de 2020, mas tornou-se nacionalmente conhecida na primeira semana de 2021 trazendo muitas controvérsias.
O público recebeu a obra com uma série de questionamentos compreensíveis, já que grande parte da sua força está no caráter contestador. A criação da enorme vulva vermelha que também se assemelha a uma grande ferida movimentou questões sobre quais representações de feminino servem ao discurso feminista, e que tipo de obra de arte instalada num latifúndio improdutivo pode ser uma crítica adequada às desigualdades do campo e às questões ambientais.
Numa perspectiva histórica, a obra levantou a discussão do tabu em torno das representações do órgão sexual feminino nas artes. Desde o quadro ‘A origem do mundo’, pintado pelo francês Gustave Coubert em 1865, que retrata uma mulher de pernas abertas entre lençóis, até as cenas de masturbação feminina estampadas em camisetas, concebidas pela artista canadense Petra Collins em 2013, o escândalo, o pânico moral e a repugnância continuam sendo respostas muito frequentes.
Não se pode dizer o mesmo das representações do falo na história da arte. No mesmo estado que hoje abriga uma única ‘Diva’, há dezenas de esculturas fálicas do cânone pernambucano Francisco Brennand, só para citar um exemplo regional.
Os meandros do debate em torno de ‘Diva’ condizem com uma obra de arte calcada numa leitura contestadora e são reveladores do profundo dissenso de opiniões por parte da plateia impactada pela obra.
Independente do debate suscitado pela instalação, é sempre bom lembrar que o consenso em matéria de arte é algo construído, atravessado por aspectos sociais, econômicos, ideológicos.
Uma leitura realmente rica de ‘Diva’ no presente momento perpassa mais o que o dissenso nos traz de lições individuais e coletivas, do que a mera questão da boa arte, um consenso de interesse do mercado da arte e das elites que o movimentam.