“Boa Sorte, Meu Amor” Mutações no agreste
As profundas mudanças sócio-econômicas em curso no país são abordadas com lucidez pelo cineasta pernambucano Daniel Aragão neste surpreendente filme.
Publicado 14/11/2013 13:01
A ironia deste “Boa Sorte, Meu Amor” está nas origens de classe dos personagens principais e não em sua relação amorosa. E, principalmente, na preocupação dos cineastas pernambucanos Kleber Mendonça Filho e Daniel Aragão em tratar em seus filmes das mutações sócio-político-econômicas do Pernambuco agrário, feudal, para o urbano, capitalista, dos últimos 10 anos. Em suas preocupações em mostrar a transformação dos coronéis de engenho em especuladores imobiliários, sem perder a truculência, a exploração da mão de obra escrava e o controle de seus negócios.
Mendonça Filho, em “O Som ao Redor” (2012), e Daniel Aragão, neste “Boa Sorte, Meu Amor”, ao abordar este tema dão ao cinema uma dimensão perdida desde o “Cinema Novo”: de expor as entranhas do país, suas contradições de classe e seus novos impasses sócio-político-econômicos. Mendonça Filho monta um painel em que a ação do velho coronel de engenho se contrapõe à organização dos trabalhadores para o desfecho surpreendente. E traz para debate o que a mídia burguesa, o cinema fast food e a intelectualidade colonizada negligência para servir aos interesses do capitalismo subsidiado do país e do imperialismo do decadente 1º Mundo.
Aragão dividiu seu filme em três partes, em duas delas estrutura a relação amorosa de Maria (Christiana Ubach) e Dirceu (Vinicius Zinni) e as conversas deste com o pai, ex-senhor de engenho, herdeiro de família escravocrata, tendo em sua árvore genealógica uma tetravó escrava. É nestas partes que Aragão exercita a estética de Antonioni (1912/2007) em “A Noite” (1961) e Khouri (1929/2003) em (“Noite Vazia” (1964) em longos planos sequência e belo preto e branco. A câmera delata no rosto de Maria, na conversa do pai com Dirceu, em panorâmicas do amontoado de espigões recifenses, em extensas salas de apartamentos de luxo.
Grande imprensa rifou a liberdade de expressão
Há sequências em que sua câmera registra a mutação do senhor de engenho em especulador imobiliário e seu desapreço ao patrimônio histórico. Dirceu, em seus instantes de sinhozinho, detrata o repórter que foi entrevistá-lo ao seu mando, diante do questionamento de estar demolindo um velho casarão, ao que ele responde: “Já fiz a minha parte, o Estado é que não fez o dele”. Não é diferente no resto do país, salvo que a imprensa burguesa nacional rifou a liberdade de expressão, ao não questionar o capital que preserva seus lucros. Apenas Maria irá desancar o coronel urbano.
Mas é na terceira parte que Aragão e seus corroteiristas Gregório Graziosi e Luiz Otávio Pereira desconstroem a imagem do coronel de engenho. De senhor poderoso, centralizador, paternalista, vingativo, ele se tornou odiado. O ambiente que seu filho Dirceu encontra é de progresso, de mudança sócio-econômica, comportamental. A velha e modorrenta cidadezinha é agora um centro ebulitivo. Mas a agitação existencial em que Dirceu entra beira o absurdo. Está em constante espera, os que deveriam ajudá-lo, em sua busca da amada, o tratam com mutismo e indiferença e corre risco de vida.
O abandono da “antiga subserviência” é a resposta do sertanejo a séculos de exploração e violência. As transformações sócio-econômicas lhe dotou de nova visão, e o ex-senhor de engenho que “não apóia a reforma agrária nem confia no Estado” não percebeu. Aragão usa de metáforas para atestar esta mutação: o cavalo que agoniza no centro do Recife é o símbolo do animal de carga em cujo lombo a produção circulava pelo estado. Até mesmo o padre, sustentação político-social do senhor de engenho, perdeu espaço para o pastor evangélico. E os/as beatos/as a fazer penitência desapareceram.
Há muito ainda a fazer
Se em “Deus E O Diabo da Terra do Sol” (1964), Glauber Rocha (1938/1981) denuncia o misticismo, a seca, o cangaço, como retrato da persistência do feudalismo no Nordeste, Aragão muda o eixo desta visão. O que transforma é o desenvolvimento, uma prova são as obras da transposição do Rio São Francisco, o tratamento que Dirceu recebe do engenheiro, ameaçando-o se não fosse embora. E o próprio Pastor em seu elogio ao Velho Chico, como o rio da “Salvação”. Dirceu tem assim sua danação, perambula pelo sertão, beirada de rio, sem apoio algum – vaga como alma amaldiçoada, pagando pelos danos causados por seus antepassados. É um achado e tanto de Aragão.
Este filme, entretanto, enseja algumas reflexões. Os senhores de engenho se tornaram especuladores imobiliários sem mudar seus métodos administrativos, nem sua relação escravocrata com os trabalhadores. E continuam a ditar como classe dirigente os rumos políticos da região. Com a burguesia nacional não é diferente. Suas relações com o Estado, que permanece como estância garantidora de seus negócios através de subsídios, supostamente para amenizar a “alta carga tributária”, é a mesma de antes. Cada vez mais se sustenta na mídia burguesa, nos ruralistas, nos fundamentalistas neoliberais, na intelectualidade colonizada e nos neoconservadores camuflados. A batalha pela frente é grande.
“Boa Sorte, Meu Amor”. Drama. Brasil. 2012. 95 minutos. Musica: Jimi Tenor. Fotografia: Pedro Sotero. Roteiro: Daniel Aragão, Gregório Graziosi, Luiz Otávio Pereira. Direção: Daniel Aragão. Elenco: Christiana Ubach, Vinicius Zinni, Rogério Trindade, Maeve Jinkings.