Botando botox na alma

Nascer é uma morte. Para continuar vivos de verdade, temos que passar por muitas mortes. E tudo o que vivenciamos, sofrido ou prazeroso, fica gravado nos registros do corpo, e não só nele: também nos andares de cima, onde estão a mente, com suas emoções, para ficar só no segundo andar. Sabemos que o corpo não mente. Não podemos enganar a mente. A mente é que nos engana. Há quem aceite (e pague por isso) que injetem em seu rosto insulina botulínica, que paralisa os músculos da face.

Ficam tão rígidas e crispadas, que não mais dão sinais de vida, traduzidas em expressão facial. Tudo em nome da vaidade, e para que não tenham o rosto enrugado. Tendo paralisados os músculos da face, reagem do mesmo modo quando lhes dizemos que as amamos, ou quando recebem a notícia de que alguém querido seu veio a óbito. Tudo pelo lutar contra o tempo, e do apegar-se à ilusão da juventude eternizada.

Quem poderia rejuvenescer o espírito amputado, à custa de botox? Para o espírito amputado não há prótese – nem pode ser limpo com a mais exigente guariba de lava-jato de rico. Pior do que envelhecer no rosto é ter a alma enrugada. A pele das almas não aceita botox – não dá retífica. Pra não mentir a nós mesmos, e não aceitar que outros nos imponham as mentiras com que se deleitam, é preciso estar atentos contra os de caráter encouraçado, que sempre matam os que, tendo vida interior, se libertaram do circo trágico das ilusões. São desta grei os que, em coletivo, assassinam e degradam onde quer que a encontrem. Encouraçados são os da raça dos Morcenigo, os assassinos do Cristo, que tentam matar a vida todos os dias, já que a mataram em si mesmos, ou jamais conheceram a Vida viva.

O plano das pessoas portadoras de normose cronificada é roubar a alma dos que dizem amar. O plano que concebem e colocam em ação, em relação aos que elas escravizam, com sua falsa proteção, é que suas vítimas sejam marinheiros de navegação sem ondas. Uma navegação sem risco, tendo o barco amarrado ao cais, por toda a vida, até que apodreça e desapareça – sem jamais ter enfrentado nenhum perigo em mar aberto. Palavras de Herman Hesse, em seu romance Demian: “Só no seu íntimo existe aquela realidade pela qual você tanto anseia. Não posso dar-lhe nada que não exista dentro de você. Não posso abrir-lhe outra galeria de quadros além da sua própria alma”.

Esta aparente ausência de risco é o contrário do que ambicionam os verdadeiros marinheiros, para quem “navegar é preciso, viver não é preciso”. Na vida real ocorre o contrário disto: navegar é estar intensamente vivos, expostos tanto aos maus ou bons encontros, quanto às quedas e conflitos. Mas há também uma coragem sábia, que aceita perder, renunciar, seguir sem bagagem, e nada reter; são desta grei, no entanto, os que, em seu desapego ao ter, aceitam pagar um alto preço, por não trair a parte de sua alma que é livre e imortal.

Há uma nobre ambição nos que alcançam a grandeza espiritual de renunciar ao querer o que não é essencial ao viver. Para ser grandes, temos muitas vezes que aceitar ser pequenos. É preciso ter uma vastidão de alma, e integridade de espírito, para aceitar perder, declarar que não sabe, assumir que somos pequenos. Vasto é o saber do sábio que dizer que sabe: só sei que nada sei. Fernando Pessoa disse-o em versos magníficos: “Para ser grande, nada teu exagera ou exclui. Sê como a lua, que em todo lago brilha, porque alta vive”.

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