Brasil Profundo e Brasil Imaginário: um olhar sobre as contradições culturais do país
Desde o período colonial, nossas elites buscaram construir um projeto nacional que dependesse do apagamento ou da subordinação das culturas nativas e afrodescendentes
Publicado 30/01/2025 15:07

Você já ouviu falar da teoria de Guillermo Bonfil Batalla sobre o “México Profundo” e o “México Imaginário”? Pegando o primeiro destes, o conceito de “México Profundo” refere-se às comunidades descendentes dos povos mesoamericanos. Embora apresentem diversidade cultural e diferenças regionais, o autor (2001, p. 31) argumenta que todas essas populações compartilham a herança de um mesmo processo civilizatório.
Por outro lado, o “México Imaginário” representa uma parte da população influenciada pela cultura ocidental, caracterizada por seu caráter urbano, moderno e liberal. É, portanto, concebido como uma construção idealizada. Segundo Batalla (2001, p. 93), essa visão do país está profundamente atrelada aos modelos e paradigmas estadunidenses.
Adaptar essa perspectiva ao Brasil, apesar de variadas nuances, é algo interessante de ser debatido. A ideia de “Brasil Profundo” reflete a resistência e a vitalidade de culturas que persistem, apesar do colonialismo e das práticas de apagamento histórico. Esses grupos representam uma diversidade de visões de mundo, práticas sociais e estéticas que vão muito além das estruturas pela colonização europeia. Comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas e camponesas, por exemplo, preservam modos de vida que contrastam com a modernidade imposta pelas elites. A força desse “Brasil Profundo” pode ser percebida na presença de elementos culturais como as danças típicas, as línguas originárias e as religiões de matriz africana e ameríndia.
Entretanto, o que predomina no imaginário social é uma representação construída pelas elites: o “Brasil Imaginário”. Isso pode ser entendido como a tentativa de criar uma identidade nacional unificada, pautada em valores europeus e em modelos de progresso alinhados à visão ocidental. É esse Brasil idealizado que aparece em narrativas oficiais, como o país moderno e industrializado, mas que evoluiu com a complexidade cultural e social formada ao longo de séculos. Essa idealização se manifesta no desligamento de povos originários, no racismo estrutural e na ideia de que modernização significa poupar-se de valores comunitários e locais.
A tensão entre o “Brasil Profundo” e o “Brasil Imaginário” tem raízes históricas. Desde o período colonial, nossas elites buscaram construir um projeto nacional que dependesse do apagamento ou da subordinação das culturas nativas e afrodescendentes. A independência incompleta do Brasil, por exemplo, foi conduzida por uma elite escravista, que manteve quase todos os mesmos valores herdados de Portugal. Isso reforçou o domínio das classes dominantes e subjugou ainda mais o “Brasil Profundo”, marginalizando suas vozes e saberes.
Nos séculos 19 e 20 (até metade), essa dinâmica foi intensificada com a chegada de imigrantes europeus, que foram incentivados a ocupar espaços sociais enquanto os descendentes de africanos e indígenas continuavam à margem. Essa política evidencia o esforço sistemático das elites em reforçar o “Brasil Imaginário” como um lugar moderno e civilizado, de inspiração europeia. Paralelamente, a verdadeira diversidade cultural e étnica do “Brasil Profundo” foi renegada ou folclorizada, perdendo seu espaço político e cultural na construção da identidade nacional.
No entanto, este segmento nunca deixou de resistir. Sua influência é reveladora, de forma contundente, na culinária, nas manifestações artísticas, na música e nas religiões. Apesar disso, essas contribuições foram frequentemente esvaziadas de seus contextos originários, transformando-se em mercadorias consumidas pelo “Brasil Imaginário”. Um exemplo claro é a transformação do samba de prática comunitária em produto comercial, associada a uma visão romantizada do país, mas desvinculada das condições de vida de seus criadores.
No presente, essa dualidade ainda é visível. O discurso de modernização continua excluindo as práticas do “Brasil Profundo”, associando-as ao atraso ou à falta de desenvolvimento. Comunidades indígenas que lutam por terras e direitos, por exemplo, enfrentam uma narrativa dominante que os pinta como obstáculos ao progresso. Da mesma forma, as religiões de matriz africana sofrem preconceitos profundamente enraizados no racismo e na imposição histórica de valores oriundos dos nossos colonizadores.
Diante disso, pensar nessa dualidade (nos termos propostos por Batalla) pode ajudar a desconstruir o mito da nossa homogeneidade cultural, convidando à valorização dos saberes tradicionais e à necessidade de criar um espaço onde múltiplas visões de mundo possam coexistir de forma igualitária. Esse movimento, no entanto, depende de ações concretas, como a valorização da educação bilíngue em escolas indígenas e o fortalecimento das políticas públicas voltadas às comunidades tradicionais.
Outra implicação importante é a possibilidade de questionar a própria ideia de progresso, central no “Brasil Imaginário”. Enquanto essa ideia continuar atrelada à destruição de biomas, ao avanço de fronteiras agrícolas e ao esvaziamento cultural, as vozes do “Brasil Profundo” continuarão a ser subjugadas. Adotar uma perspectiva que valorize a sustentabilidade, a diversidade cultural e a justiça social é essencial para romper com essas lógicas excludentes.
Por outro lado, a persistência dessas dinâmicas revela a dificuldade de implementação de mudanças estruturais em um país marcado pela concentração de poder e riqueza nas mãos de poucos. Mesmo as iniciativas que buscam mudar essa situação, enfrentam profunda resistência de forças que sustentam a narrativa hegemônica. A desinformação, os discursos de ódio e os cortes de políticas sociais tornam ainda mais exigente o reconhecimento dessas culturas.
Reconhecer o “Brasil Profundo” não é apenas uma questão de valorização cultural, mas também uma oportunidade de compensar o país como um todo. Ao adaptar o conceito para o contexto nacional, pode-se ampliar o debate sobre identidade, pertencimento e justiça social, algo ainda tão necessário em nossa luta por podermos ser e nos reconhecer como quem somos!
Referência:
BATALLA, Guillermo Bonfil. México Profundo: una civilización negada. México: Conaculta, 2001 [1º ed. 1987].