Brasil, Rússia e China: breves notas comparativas em História Econômica

Segue abaixo apresentação feita por mim em conferência ministrada no Instituto de Estudos Latino-Americanos da Academia Chinesa de Ciências Sociais (IL-CASS) em Pequim no dia 14/01/2007.

O que é essencial a ser apreendido numa proposta de análise comparativa entre quatro realidades tão cambiantes? A exposição de números e modelagens pode ser suficiente na observação de todos os detalhes inerentes a processos tão diferentes de desenvolvimento?


 


Parto do princípio de que a economia é uma ciência histórica por excelência (1).


 


Digo isto para clarear o fato de que todos os países que compõem o BRIC tiveram ou têm grande experiência acumulada de participação estatal e de utilização de mecanismos de planejamento e controle sobre os elementos cruciais do processo de acumulação, a saber: o juro, o crédito, o câmbio e a finança. Torna-se importante advertir que como países periféricos (ou emergentes) o nível de crescimento acelerado da riqueza social – em tais países – passou necessariamente pela forte presença estatal, seja em cadeias produtivas inteiras, seja no monopólio – via câmbio – sob o comércio exterior. A história não atesta a existência de nenhuma trajetória industrializante – sobretudo tardia (ou de via prussiana) – marcada pela ausência de mecanismos de planejamento, ou seja, sem a presença do Estado Nacional.


 


 



O câmbio e o instituto da reserva de mercado


 


 


Comparação interessante pode ser feita entre dois processos simultâneos de desenvolvimento econômico: Brasil e Rússia. Os dois países citados – ao lado do Japão – foram os campeões de crescimento econômico mundial entre os anos de 1930 e 1980. Dois acontecimentos de ordem política devem ser destacadas: a Revolução Russa de 1917 e a Revolução de 1930 no Brasil. A Revolução Russa engendrou determinadas mudanças institucionais que permitiram a tomada do planejamento para fins de domínio sob a ação das leis econômicas. Nas palavras de Ignácio Rangel, o economista deixara de ser um 'meteorologista' da conjuntura para fazer-se fautor de sua própria conjuntura (2).


 



Irresistível a constatação que liga a atual emergência econômica da Rússia com seu passado de planejamento estatal e com a utilização de tecnologias e recursos ociosos engendradas anteriormente e temporariamente abandonadas no início da década de 1990.


 


 


O caso brasileiro é semelhante, porém tem suas particularidades. Ao contrário da Europa e das economias surgidas na Idade Média, onde o comércio exterior somente paulatinamente tornou-se variável a se considerar, o Brasil e seu ato de descobrimento são um acidente histórico onde o comércio exterior transformou-se no motor primário de seu desenvolvimento. Logo, de forma um tanto quanto óbvia, o nosso processo econômico é concomitante com as conjunturas cíclicas (Kondratieff) da economia mundial. Das chamadas crises de nossas trocas externas advém o que brilhantemente denominou-se de processo de substituição de importações. Processo esse nascido – no Brasil – ainda na fazenda de escravos e que levou nosso país a se tornar – com a implantação (brilhante) de um novo Departamento I (indústria mecânica pesada) – a 8º economia mundial em fins da década de 1970, com crescimento econômico médio próximos dos 7% ao ano entre 1930 e 1980 (3).


 


 


Ainda acerca da trajetória brasileira, é importante notar que a instituição econômica mais proeminente em nosso processo substituídor de importações foi a reserva de mercado. Mesmo em tempos em que o comércio exterior ganha centralidade total nas relações internacionais. Mesmo que se propale uma chamada economia de mercado. Mesmo que se proclame a necessidade de abertura de contas de capitais. Mesmo com todas as variáveis colocadas pelo mainstream, é bom que se ressalte: o nosso processo de industrialização deve ser aprofundado. Voltaremos a isto.


 


 


A implantação no Brasil do instituto citado está na raiz de nosso processo de desenvolvimento iniciado na década de 1930 – na esteira da crise de 1929. Precede sua instalação o advento de classes no poder de nossa República interessadas no desenvolvimento de nossa indústria. De certa forma, era a temporária vitória dos setores industrialistas em detrimento dos então agraristas. A imposição da reserva de mercado deve-se – de forma completa – ao escasseamento de reservas cambiais ocasionado pelo óbice a nossas exportações pari passu ao estrangulamento de nossa capacidade de importar. Fez-se necessário, então, uma intervenção eficaz no mercado cambial, que quase por osmose começou a discriminar entre “produtos essenciais” (bens de produção) e “produtos não-essenciais” (produtos de consumo). De uma forma mais geral podemos atribuir a unificação política e do mercado nacional brasileiro, a partir da década de 1930– entre outros fatores – ao instituto da reserva de mercado, que significa – em rasas palavras – a instituição de um câmbio que atenda aos interesses nacionais, ou seja, à industrialização do país.


 


 



Aliás, retornando à realidade concreta e atual, os que buscam fatores que diferenciam o processo de desenvolvimento chinês e indiano (e também russo) do atual em curso no Brasil (década de 1990) com certeza terão de analisar com profundidade a criação do instituto da reserva de mercado em todos os países citados. A grande diferença entre o caso brasileiro do século passado e as atuais experiências analisadas está em que, enquanto o Brasil acabou “acertando por equívoco”, os demais países transformaram aquele instituto em parte integrante e consciente de seus projetos nacionais.


 


 


Com certeza, aprenderam com o caso brasileiro (4).


 



Brasil e Rússia no século 20 e a relação entre Índia e China hoje


 


 


Retornando à proposta inicial, fica uma questão: qual a relação que podemos fazer entre Brasil e Rússia no século 20 e os atuais fenômenos chinês e indiano (e também russo)?


 


 


Brasil e Rússia (URSS) industrializaram-se de forma acelerada durante um ciclo de depressão internacional (1929-1945), enquanto que China e Índia gestaram seus projetos nacionais em outro ciclo depressivo mundial, iniciado em 1973. Em ambos os períodos, economias de ambos os lados da então “cortina de ferro” responderam positivamente a seus desafios internos, a partir de crises externas, e, para o caso chinês, também de crises internas.


 



Para os países em tela, mais uma vez citamos Ignácio Rangel: (…) são mudanças institucionais assim, que, não necessariamente as mesmas, possibilitaram e estão possibilitando saltos econômicos espetaculares, cuja formula geral é, precisamente, esta: um esforço para a formação de capital, orientado para a aplicação de tecnologia já amadurecida nos países de vanguarda, pelo uso do potencial ocioso já acumulado, à espera de inovações institucionais que as ponham em evidência (5).


 


 


Ora, apesar de nosso competente e contraditório processo ocorrido no século 20, há cerca de duas décadas o nosso país de certo acabou “perdendo seu rumo”, ao mesmo tempo em que países como a China e Índia passaram à dianteira do crescimento econômico mundial. O que ocorreu com eles e conosco? Será que assertivas como “mão-de-obra barata” servem de parâmetro à comparação?


 


 


 


Atenhamo-no ao caso chinês, pois a China – há algum tempo – transformou-se no principal bode expiatório dos óbices econômicos brasileiros. Explicar os fatores ou motivos do espetacular sucesso da China e de sua economia mercantil sob orientação socialista passa necessariamente por uma análise histórica. Assim – de forma generalizada – procederemos.


 



China: uma necessária análise histórica


 


Estamos intercambiando comercialmente com uma nação de mais de 5.000 anos de existência. Seu Estado Nacional foi consolidado há cerca de 2.500 anos. As bases da divisão social do trabalho –surgidas no bojo da separação entre economia de ganho e economia doméstica – remontam – na China – a mais de 3.700 anos, o que quer dizer que há pelo menos três milênios o comércio é parte do cotidiano chinês. Trazendo ao concreto, de imediato podemos afirmar que não estamos lidando com iniciantes na arte de comerciar.


 


Por outro lado, o atual regime chinês herdou o que de melhor o Império do Meio criou: o planejamento. Esta herança é perceptível, por exemplo, na capacidade de governança chinesa expressa não somente por sua política comercial, mas também na agilidade com que se disgnostica um ponto de estrangulamento na economia e a rapidez com que se procede sua superação. Percebe-se também esta herança na prontidão com que o governo central chinês pode interferir sob um território de mais de 9 milhões de km 2 (grandes obras de infra-estrutura). O planejamento como instrumento de ação governamental, na China, é legado histórico do que se denominou como modo de produção asiático. Segundo o professor do Depto. de Geografia da FFLCH-USP, Armen Mamigonian: O modo de produção asiático correspondeu ao primeiro grande esforço de planejamento estatal ao intervir – com o apoio de massas camponesas – em imensas obras hidráulicas que permitiram ampliar as áreas agriculturáveis, a partir de áreas propícias (centrais),
para áreas menos favorecidas pela natureza (6).


 



Ora, o que ocorre atualmente na China é justamente a aplicação de um projeto nacional baseado no acúmulo histórico de sua própria civilização. Projeto nacional este reafirmado em três acontecimentos no século passado: a proclamação da República em 1911, a Revolução Nacional-Popular de 1949 e sua reafirmação de propósitos e correção de rumos na política de Reforma e Abertura implementada em 1978.


 


 


Amparado em sua milenar trajetória, o Estado Nacional chinês e seu partido governante, o Partido Comunista da China (PCCh), estabeleceram a meta de transformar a China em uma nação medianamente desenvolvida no ano de 2050. Desde então seu PIB praticamente dobrou a cada sete anos. Esta trajetória no rumo do crescimento e da maior inclusão no mercado consumidor da história (400 milhões de chineses saíram da linha da pobreza) foi e é lenta, gradual e segura.É a marca registrada de uma sociedade educada para ganhar contendas pelo meio da paciência e da segurança gerada pela grandeza de sua história e civilização.


 



A China e a fusão do “Estado Revolucionário” com o “Estado Desenvolvimentista”


 


A estratégia de desenvolvimento executada pela China desde 1978 é pautada pela consecução de objetivos de cunho econômico, político e social (7).


 


A percepção de que a China estava em franca desvantagem ante seus vizinhos asiáticos, mais a premente solução de problemas políticos e sociais advindos da Revolução Cultural (1966-1976), levou Deng Xiaoping (1904-1997) – comunista de primeira hora e veterano da Longa Marcha (1934-1935) – a implementar um amplo programa de modernização. Programa esse que deveria contemplar, além dos problemas expostos, a solução tanto de pendências históricas (Hong-Kong, Macau e Taiwan), quanto de questões de ordem imediata, entre elas o abastecimento alimentar do país e o aumento dos rendimentos camponeses.


 


Subordinando a determinação econômica à ação política concreta e abstraindo o que é essencial do fenômeno em tela, podemos afirmar que em 1978 cristaliza-se um processo de fusão de dois Estados na China. Trata-se da fusão do Estado Revolucionário, fundado por Mao Tsétung, em 1949, com o Estado Desenvolvimentista, fundado por Deng Xiaoping (8). Desenvolvimentista em alusão ao modelo asiático (Japão e os “Tigres”) aplicado também pela China.


 


Ora, a experiência de nação milenar, mais o acúmulo de processos recentes de industrializaçãotardia foram motes que permitiram o Estado Nacional chinês planificar reformas primeiramente no campo, depois na instalação de Zonas Econômicas Especiais e atualmente no grandioso projeto de“desenvolvimento do oeste”.


 


A 2º Reforma Agrária (contratos de responsabilidade entre família e Estado) permitiu – com a liberalização do comércio de excedentes agrícolas – desatar o ponto de estrangulamento do abastecimento alimentar, criar um mercado interno para produtos manufaturados e satisfazer a base política do PCCh (os camponeses). O passo seguinte, seguindo o modelo coreano das Zonas de Processamento de Exportação (ZPE`s), foi a instalação gradual de Zonas Econômicas Especiais (ZEE`s) com o objetivo de succionar capitais e tecnologias estrangeiros ultranecessários ao seu ambicioso projeto modernizador. Um traço interessante das ZEE`s foi a localização geográfica: as quatro primeiras ZEE`s instaladas em 1982 estavam todas elas voltadas tanto para Hong-Kong, quanto para Taiwan e as minorias chinesas do sudeste asiático. Foi a mais competente forma de se criar condições objetivas à unificação nacional (zona de convergência econômica) num futuro
próximo (9). Atualmente mais de 60% dos Investimentos Diretos Estrangeiros (IDE`s) na China têm origem nos chineses ultramarinos.


 


Após as primeiras instalações em 1982, outras 10 cidades foram escolhidas. Em 1984 e em 1987, todo o litoral chinês foi declarado ZEE. Em 1992 todas as capitais de província e região autônoma alcançaram este mesmo instituto. Em 1997 Chongqing foi declarada Municipalidade diretamente subordinada ao poder central com o objetivo de servir de centro dinâmico à expansão ao oeste oficializada na primavera de 1999. Dadas as simetrias geográficas e históricas (expansão ao oeste dos EUA na segunda metade do século 19), convencionou-se designar Chongqing de a “Chicago Chinesa” (10).


 



À guisa de uma conclusão


 


Várias conclusões podem ser retiradas deste gigantesco projeto nacional. Ao relacionar tal projeto com a “apostasia” brasileira, preferimos ficar com as observações do professor titular do Instituto de Economia da UNICAMP e Intelectual do Ano de 2005, Luiz Gonzaga Belluzzo, que no prefácio ao nosso trabalho (“China: Infra-Estruturas e Crescimento Econômico”) afirma: É impossível resistir à constatação de que a China enfrenta os desafios da globalização com concepções e objetivos que desmentem o propalado declínio do Estado-Nação, das políticas nacionais e intencionais de industrialização e desenvolvimento. Por aqui, neste Brasil varonil, a paixão nacional é discutir a cor dos gatos. Os 'donos do pedaço' têm absoluta certeza – do alto de sua presunção estagnacionista – de que todos eles são pardos.


 


Para o caso específico de minha nação, e seu futuro, encerro esta breve apresentação com a observação de Ignácio Rangel (“Economia Brasileira Contemporânea”), tão válida para o atual momento: Quem ainda não sabe que o Brasil é useiro e vezeiro em acertar por equívoc, não sabe da missa a metade. Se estivermos certos no fundamental – ou seja, se acreditarmos no país – iremos corrigindo os erros currente calamo.


 


 


Notas:


 



(1) Poderíamos sim construir modelagens puras de comparação. Infelizmente, muito da atual atividade científica econômica é baseada neste método que serve à 'coisificação' do objeto. Trata-se de um pressuposto à quantificação – e empobrecimento – da ciência econômica.


 


(2) RANGEL, I.: “Desenvolvimento e Projeto”. In, Obras Reunidas de Ignácio Rangel. Editora Contraponto. Rio de Janeiro, 2005, v. 1, p. 206.


 


(3) Aos interessados em melhor compreender este processo sugerimos a leitura de: RANGEL, I.: “Economia Milagre e Antimilagre”. Zahar. Rio de Janeiro, 1985.


 



(4) É muito comum – e nossas visitas à China atestam isso – os economistas chineses aludirem o sucesso de seu projeto à observação dos erros e acertos do processo de substituição de importações em países como o Brasil.


 


(5) RANGEL, I.: “O Quarto Ciclo de Kondratiev”. Revista de Economia Política. São Paulo, v. 10, n. 04, outubro-dezembro de 1990. Importante notar que em Rangel, o termo “reformas institucionais” nada tem a ver com as propostas em voga atualmente e, sim, com reformas que sirvam para a abertura de nossa economia de forma planificada. Logo,
tratam-se de reformas que não servem de pretexto para o dumping – via câmbio e taxas de juros, que está freando a economia brasileira – sob nosso mercado interno.


 


(6) MAMIGONIAN, A.: “Desenvolvimento Econômico e Questão Ambiental”. Cadernos da VII Semana de Geografia. Universidade Estadual de Maringá. Maringá, julho de 1997.


 


(7) Maiores detalhes da estratégia chinesa (com variados dados primários) podem ser encontrados em: MEDEIROS, Carlos A. de: “Economia e Política do Desenvolvimento Recente da China”. Revista de Economia Política. São Paulo, v. 19, n. 03, julho-dezembro de 1999. Sugerimos ainda leitura do primeiro capítulo de nosso trabalho: JABBOUR, E.:
“China: Infra-Estruturas e Crescimento Econômico”. Anita Garibaldi. São Paulo, 2006, 256 p. Sob o título de “A Economia Chinesa: Fatores do Crescimento Prolongado”, este primeiro capítulo objetivou a exposição de uma série de fatores que determinam o sucesso do modelo em curso na China.


(8) O conceito de fusão de dois Estados na China foi elaborado por Manuel Castells no terceiro tomo de sua trilogia sobre a Era da Informação (“Fim de Milênio”. Paz e Terra. São Paulo, 1999).


 


(9) Sobre este processo sugiro a leitura de: OLIVEIRA, Amaury, P. de: “O dinamismo territorial do reformismo chinês”. Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, n° 125, 1996.


 


(10) O meu trabalho “China Infra-estruturas e Crescimento Econômico” trata de todo este processo em andamento. Vale assinalar que entre 2001 e 2010, Chongqing está recebendo US$ 20 bilhões anuais para transformá-la – a exemplo, para o caso norte-americano, de Chicago – no centro dinâmico da expansão ao oeste da China.

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