“Bravura Indômita”: Poder da Vingança
Os Irmãos Joel e Ethan Coen atualizam o faroeste em filme sobre a vingança, o poder do dinheiro e a força da fantasia e da memória
Publicado 19/04/2011 23:14
A cavalgada noite adentro da adolescente Mattie Ross (Hailee Steinfeld), em “Bravura Indômita”, dos Irmãos Joel e Ethan Coen, tem muito de fábula sombria. Narradora da novela do escritor estadunidense Charles Portis “True Grit”, “Verdade Encoberta”, em tradução livre, e do filme, ela enche sua história de bravatas, penetrando os obscuros labirintos da natureza humana. Aos 14 anos, ela se dá a tarefa de perseguir Tom Chaney (Josh Brolin), assassino de seu pai. E depois de contratar o rabugento e não menos fantasioso delegado federal, Rooster Cogburn (Jeff Bridges) acompanha-o em sua epopéia em busca da vingança. Uma caçada que, aos poucos, mostra-lhe o frágil limite entre a “ética” de Cogburn, do Texas Ranger LaBoeuf (Matt Damon) e dos bandidos que encontra pela frente.
Se a vingança dita seu estado de espírito, o dinheiro impulsiona os de LaBoeuf, Chaney e Luc Ned Pepper (Bary Pepper). Em sua novela, Portis leva quase 100 páginas tecendo um enredo em que o dinheiro se sobrepõe aos demais interesses. Mattie pechincha com o comerciante de cavalos Stonehill (Dakin Mattews), a dona da pensão e, sobretudo, Cogburn, ex-pistoleiro e ex-ladrão de banco. E no livro, ele é a chave para o entendimento de sua personalidade, enquanto que nas adaptações para o cinema, é transformado num aspecto quase insignificante. Toda vida de Mattie é pautada pelo trato com o dinheiro, mesclado ao cinismo, ao mandonismo e à arrogância, que tanto irritam Cogburn e principalmente LeBoeuf.
Os Coen ao seguirem Portis retiram de sua história o tratamento de faroeste clássico, feita por Henry Hartaway, em sua leitura da mesma obra em 1969. É mais cadenciado, noturno, mesclando off e as fanfarronices de Cogburn. Inexiste a paisagem inóspita, o deserto, o que se impõe ali é o inverno, a floresta fechada, a busca de homens que pouco se diferenciam das víboras. Assim, os Coen mesclam sua visão com a de uma mulher madura relembrando a aventura de uma garota de 14 anos. E a deles próprias sobre a ação dos homens da lei e dos assaltantes de bancos dos EUA, no século XIX.
Hartaway transforma a vingança de Mattie numa jornada do herói Cogburn, feita por um John Wayne igualmente crepuscular. Isto numa época de revisão dos mitos do oeste. Fez um filme de cowboys cavalgando com uma garota espevitada, falastrona, feita por uma Kim Darby mais frágil que Hailee Steinfeld. Nem por isto menos ambígua. A Mattie dos Coen, vista depois tentando reverenciar Cogburn, é uma senhora circunspecta, sofrida, solitária. O que torna a adaptação de Hartaway e a deles, Coen, tão diversas. A do velho diretor prende-se aos clássicos westerns hollywoodianos. Enxuta, direta, simples, com direito à homenagem ao Wayne dos faroestes das décadas de 20 e 30. E com direito ao empinar de cavalo e o grito de triunfo do herói, diante de Mattie, ainda adolescente, sentada na porteira de seu sítio.
Leituras diferentes
da mesma história
Os Coen trazem sua história para os tempos atuais, em que a diferença entre os “mocinhos” e os “bandidos” é quase nenhuma. Cogburn, embora delegado federal, não recusa a recompensa que lhe oferece Mattie. Já o Texas Ranger LeBoeuf só pensa na recompensa que a família do senador assassinado por Chaney oferece. Assim ele revela a Mattie quem é na verdade. É com este tipo de homens que ela se envolve para vingar a morte do pai. Nisto se constitui a atualização dos Coen, motivo do sucesso do filme entre os fãs do faroeste e as novas gerações, mais interessadas num filme de ação.
Mostra que o faroeste clássico se perdeu nos anos 60 com seus heróis imaculados. A guerra do Vietnã, os movimentos de liberdades civis, a emancipação das mulheres, as lutas dos afro-descendentes pela igualdade racial e as lutas de libertação na África, América Latina e Ásia contribuíram para isto. E notadamente a crescente urbanização das cidades e a crença na justiça do Estado burguês, mesmo que sob constante suspeita. O que pôs de lado o heroísmo tão chancelado pelo faroeste e a mentalidade campesina. Ainda que eles, os westerns, tenham muito de mitologia grega, da visão aristotélica da narrativa, e por isto conserve parte de seu encanto. Porém, os Coen, a partir da visão de Portis, mantiveram o que havia iniciado Sam Peckinpah, em 1962, com “Pistoleiros ao Entardecer”.
Neste filme, dois velhos delegados, na pele de Randolph Scott e Joel McCrea, a exemplo de Cogburn, já sentiam o peso da idade. Os movimentos, a visão, o físico, já não os ajudavam. A empreitada final, a que tinham se imposto, acaba por se mostrar além de seus limites. Cogburn o percebe ao não conseguir mais ter a pontaria da juventude.
A maneira como Mattie descreve seu duelo em campo aberto tem muito dos cavaleiros medievais. É nesta fábula um traço da memória de uma garota. Ela, no final, quando rende homenagem a seu “herói” o faz mais para si, pela lembrança do que um dia foi. É o que lhe resta na velhice: o túmulo de Cogburn e o que fez para vingar a morte do pai.
“Bravura Indômita” (“True Grit”). Faroeste. EUA. 2010. 110 minutos. Roteiro: Joel e Ethan Coen, baseado na novela de Charles Portis. Fotografia: Roger Deakis. Direção: Joel e Ethan Coen. Elenco: Jeff Bridges, Matt Damon, Josh Brolin, Hailee Steinfeld, Barry Papper.