“Cabeça a Prêmio”: Suspeita Conexão

Filme do diretor brasileiro Marco Ricca trata o outro lado do crime organizado e revela o que as fachadas de legalidade e respeitabilidade podem esconder

              O espectador se acostumou a ver na tela filmes policiais com ações espetaculares, explosões, corpos espatifando, sangue jorrando. Quando um filme foge a estes estereótipos não recebe a devida atenção. Mais ainda se trouxer a ação para o mundo real do tráfico, frio e distanciado, como o mostra o ator Marco Ricca, em seu filme de estréia. “Cabeça a Prêmio”. A partir do livro homônimo do escritor Marçal Aquino, ele fixa sua narrativa no Brasil desconhecido pela maioria dos brasileiros, passeando sua câmera por grandes espaços ocupados por fazendas, plantações e gado de corte.

             A isto, Ricca acrescenta o cotidiano de cidade do interior, onde a vida flui devagar. A diferença é o que essa normalidade esconde. Os personagens não se assemelham aos vistos nos “filmes favela”, enfiados em bermudas, camisetas, tênis, cordões de prata no pescoço, cara de excluído estampada no rosto. Vestem-se e se misturam ao povo como qualquer pessoa comum. São “respeitáveis” elos da estrutura do agronegócio, ligados a “um produtor rural” que substitui o característico latifundiário brasileiro. Nada neles lembra, nem de longe, os conhecidos esteios do tráfico no país.

                Então nada se encaixa no que o espectador acostumou-se a ver. Talvez daí venha a pouca visibilidade que “Cabeça a Prêmio” teve no circuito exibidor. Principalmente por ter no elenco atores globais, a hollywoodiana Alice Braga e a estrela argentina Daniel Hendler. Mas o que está na tela é o visual brasileiro, de gente comum, de pistoleiros em manga de camisa, terceiromundistas, circulando por ambientes nada luxuosos. O fato que desencadeia a ação é quase negligenciado, mas apresenta, a partir daí, uma teia de arrepiar. Não há um destrinchar do motivo, pelas vias da investigação, mas o de mostrar as vísceras da conexão submersa.

              A primeira parte é quase “tediosa”, por mostrar o dia-a-dia do “fazendeiro” Miro (Fulvio Stefanini) entre negócios, discussão com o irmão e sócio Abílio (Otavio Miller), críticas da mulher Jussara (Ana Braga) e o carinho da filha Elaine (Alice Braga). A segurança de seus “negócios” fica a cargo dos pistoleiros Albano (Cássio Gabus Mendes) e Brito (Eduardo Moscovis). No entanto, é o piloto Denis (Daniel Hendler) quem mais se envolve na intriga, pois desde o início levanta suspeita do espectador e dá o tom romântico do filme.

Filme tira aglomerado
do centro do tráfico

                Estes, na verdade, são os entrechos de “Cabeça a Prêmio”, que constrói sua intrincada trama devagar. Principalmente na segunda parte, quando mostra o que está acontecendo. Cada personagem começa nela se encaixar, os elos a se firmar, os estereótipos do chefe do tráfico se esboroar, os antigos jagunços se metamorfosear em pistoleiros. A criação de gado vira o que realmente é: fachada para o tráfico através da fronteira Brasil/Bolívia. Tudo acontece na maior normalidade, sem desandar para o espetaculoso.

               Este é o melhor achado de Ricca, Felipe Braga e Aquino, roteiristas de “Cabeça a Prêmio”. As camuflagens de Miro e Abílio, compradores e distribuidores de drogas, que usam helicópteros e jatinhos para burlar a vigilância de fronteira, encobrem o que na verdade são. Tal como Steve Soderbergh em “Traffic”, Ricca mostra a fragilidade da polícia para chegar até eles e proteger testemunhas sob sua guarda. No entanto, do ponto de vista dramatúrgico, o filme cresce quando centrado nos pistoleiros Brito e Albano. Há uma tendência neles para os bares e bordéis, espaço por onde circulam naturalmente. É como se condenados a nunca se elevarem a outros patamares.  

             Existe nisto certo determinismo, que remete ao “Mineirinho Vivo ou Morto” de Aurélio Teixeira. A saída para eles inexiste, a sociedade já os condenou. Destoam dos matadores de aluguel enfiados em ternos de grife, morando em hotéis de luxo, portando armas automáticas. Brito sequer tem um lugar para ficar. E, para a surpresa do espectador, é mais eficiente do que o policial federal a quem surpreende. É o mais rico personagem do filme, feito com natural contenção por Eduardo Moscovis.

               Este traço característico do Brasil profundo é acentuado pelas canções sertanejas e os boleros curtidos não só nos bordéis, como também pela mal-amada Jussara, em seus instantes de fossa. Algo que aos poucos desaparece no comportamento da filha Eliane e na rota de fuga empreendida por ela com Denis. O espaço se alargou, o translado para a Bolívia, uma saída para ambos, vira uma armadilha. Nada é inviolável, até o amor de Miro pela filha. O desfecho o revela como se Ricca deixasse um enigma para o espectador desvendar ao estilo dos filmes de arte dos anos 60. Desta forma, “Cabeça a Prêmio” se justifica. Quem não o assistiu poderá fazê-lo na versão em DVD.

Cabeça a Prêmio”. Drama. Brasil. 2009. 104 minutos. Roteiro: Marco Ricca, Felipe Braga, colaboração de Marçal Aquino. Baseado em livro de Marçal Aquino. Direção: Marco Ricca. Fotografia: José Roberto Eliezer. Elenco: Fulvio Stefanini, Alice Braga, Daniel Hendler, Eduardo Moscovis, Cássio Gabus Mendes, Otavio Muller.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor