Cabeças de bonecas

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Xilogravura: Nei Vital

Andava pela rua um homem, devia ser um homem. Certeza mesmo é que era um corpo humano, não dava para ver seu rosto. Calça preta e uma camisa branca cheia de nomes escritos com uma caneta vermelha. Sua cabeça estava coberta por cabeças de bonecas de todos os tamanhos, sujas e deformadas. Cabeças dessas abandonadas ao relento, quando as bonecas não servem mais.

 
Aquele corpo andava em silêncio pelas ruas. Algumas pessoas paravam e se perguntavam o que era aquilo, outras nem percebiam. Tinha gente que a partir daquele corpo criava histórias para justificar o que não tinha sido contado, do outro lado da rua surgiam gritos: “olha o doido”, “não tem o que fazer, vagabundo?”.


Em silêncio, o corpo andava seguindo uma procissão com suas cabeças de bonecas. Dessas procissões que têm como ponto de partida e de chegada as nossas cabeças. 


O corpo seguia se desentendendo e reinventando no corredor de olhares, histórias e insultos. 


A cabeça daquele corpo estava ali entre as cabeças das bonecas e outras cabeças humanas.   


O corpo parecia um monstro andando pelas ruas. Os monstros existem e não usam cabeças de bonecas. Aos poucos o corpo foi ficando distante e desapareceu. Nunca mais vi aquele homem, acho que era homem, nunca soube ao certo.  Só sei que os monstros seguem em corpos sem cabeças de bonecas.    

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