“Cão sem dono”: Vidas comuns
Filme dos diretores brasileiros Beto Brant e Renato Ciasca trata do amor e da perda, como pequenos atos e uma relação inconclusa, tendo Porto Alegre como cenário
Publicado 13/07/2007 18:33
Em lugar de uma narrativa que privilegie grandes fatos, a dupla de diretores de “Cão sem dono”, Beto Brant e Renato Ciasca, optaram por um filme de pequenos incidentes. Dois jovens se conhecem e se relacionam sem entrechoques. Cada momento se traduz em afetividade, troca de impressões, sonhos e ansiedades. Marcela, a princípio, se entrega a Ciro, sem pré-condições; ele, por sua vez, a vê como alguém que lhe dá prazer. A paixão entre eles vem da visão de que nada mais há para além deles.
Esta preferência da dupla de cineastas por ambientes fechados para simbolizar a relação íntima, em que nada mais importa do que os amantes; já rendeu obras antológicas, dentre elas, a mais famosa, sem dúvida, “Último Tango em Paris”, de Bernardo Bertolucci. Ela, relação, exclui a possibilidade de qualquer influência externa, de algo que impeça a realização do desejo, do estar com o outro e dele retirar todo o prazer necessário à sobrevivência da paixão. O exterior quando surge é para reforçar a necessidade de ficarem juntos, de não se deixar ver, da à urgência de viver os instantes intensamente. Quando outro personagem se interpõe não é para impedir que continuem juntos, age como se a testemunhar a interação entre ambos. Mesmo o ambiente, às vezes, parece inexistir. É tão só o cenário para facilitar a relação.
Personagens são pessoas comuns
Esta visão, muitas vezes inconsciente, revela a necessidade de as pessoas manterem sua privacidade, coisa hoje difícil, principalmente quando muitos buscam alta visibilidade, que não se traduz em felicidade. Os personagens de “Cão sem dono” são pessoas comuns, ainda que tenham altas pretensões. Marcela (Tainá Muller) é modelo em princípio de carreira, Ciro (Júlio Andrade), tradutor, aspira às mais diversas ações na área cultural. Mas na relação entre ambos sua posição social, o espaço que tentam ocupar na sociedade, pouco importa, no instante em que estão juntos, fechados no apartamento. O que vale ali é a busca um do outro. Devagar vão construindo, trocando carícias, se revelando um para o outro. Até que precisam de tal um do outro, que qualquer alteração, pode levar ao desequilíbrio. Este se revela na fragilidade do corpo, no modo como este mostra suas fraturas. Então, tudo o que foi construído desaba. Marcela parte; deixa Ciro entregue ao vazio.
Quando isto acontece, o Ciro confiante, que aceita os obstáculos que se lhe interpõem sem discussão, começa a definhar. Entra em crise. A tentativa de acreditar que a relação se prolongaria, cheia de alternativas fica indefinida. Marcela pode retornar ou não, viver ou não. Ciro, que sobrevive ás custas de pequenas traduções, fica inseguro. O que lhe oferecem é muito pouco. O mercado editorial brasileiro não sustenta, como deve, seus profissionais. As obras mostradas nas estantes bem arrumadas, iluminadas como se livros fosse produtos de supermercado, escondem a penúria dos que delas sobrevivem. Ciro busca ajuda do pai e de Marcela, para bancar o aluguel, na tentativa de manter sua independência. Esta não vem, obrigando-o a retornar á casa dos pais. É um baque por demais forte para ele, obrigado a deixar, por enquanto, suas pretensões literárias, para trabalhar como atendente numa livraria. E agora não existe marcela, sumida, sem que consiga localiza-la. O equilíbrio estabelecido em ambiente fechado se abre para o exterior, povoado de armadilhas.
Família surge como saída para Ciro
No exterior, Ciro encontra o amigo, Elomar (Luiz Carlos V. Coelho), amabilidades, insuficientes para preencher o vazio deixado por Marcela. Situação vivida por milhares de pessoas nas grandes cidades, a perambular de um lado ao outro, sem chance de superação de seus problemas. Diante do impasse, Ciro se entrega. Apostara tudo na relação com Marcela. Num mundo onde as alternativas são poucas e minadas, jogar tudo numa paixão pode se transformar num beco sem saída. Ele não suporta, entra em crise. Mostra-se frágil, incapaz de superar o momento sem ajuda. Fecha-se em seu apartamento, freqüenta quartos de hospital, submete-se a um exame em que suas entranhas são visualizadas, numa das cenas reveladoras do interior(sem trocadilho) do corpo humano. E não é nada agradável de ver.
Brant e Ciasca, com ajuda do escritor Marçal Aquino, roteirista habitual do primeiro, mantém a estrutura do livro “Até o dia em que o cão morreu”, de Daniel Galera, no qual o filme se baseia. A família surge como anjo da guarda, sem outro interesse, salvo o de contribuir para a redenção de Ciro. Um amparo deslocado da condição de adulto para ele, pois acostumara a ter seu próprio canto. Não é diferente com dezenas de jovens, abrigados na casa dos pais, enquanto não aparecem oportunidades para que possam se libertar individual, financeira e espiritualmente deles. De qualquer modo, serve para ajudá-lo a se reerguer, cicatrizar as feridas, lançar-se de novo à vida. Isto na mudança visual, no recomeçar de cara nova. E permite também que melhore seu relacionamento com o pai.
Relações afetivas refletem na queda
O pai, Lárcio (Roberto Oliveira), que no passado experimentara inúmeros prazeres, inclusive o da droga, abre-se com o filho. Torna-se, indiretamente, seu contraponto. É como se sua dor provocasse no velho uma solidariedade, difícil de obter em outras circunstâncias. “Cão sem dono”, a partir do afastamento de Marcela, envereda pelas sombras, pelas pequenas perdas, causadoras de baques incontornáveis para sua vida. Além de Marcela, que se foi, sem que soubesse para onde, embora lhe tenha dito porque se afastava, Ciro fica às voltas com outra queda. Esta tão profunda quanto à outra. A vida tem outros fios, criados nas relações entre as pessoas, com o ser amado, com os animais, a família, os amigos: a perda de qualquer um deles, deixa um profundo vazio, como Brant e Ciasca deixam claro numa seqüência emblemática de “Cão sem dono”.
Numa bela cena, Ciro se entrega por completo, o apartamento, em polvorosa, não é mais o ambiente da paixão, mas da queda, do sofrimento. É quase uma fraqueza num mundo tomado pelo realismo extremo, a radicalidade do raciocínio, levado à últimas conseqüências. Sofrer por amor hoje é um tanto ultrapassado, diriam muitos. Este sentimento, universal e milenar, porém, é um traço indistinguível do ser humano. Difícil supera-lo, seja lá qual for a circunstância. Ainda que “Cão sem dono” emocione em certas cenas, e permita algumas reflexões sobre as relações entre homem/mulher nos dias atuais, falta-lhe contundência, ampliação do mundo de Marcela – ela é por demais indefinida; há pouco dela no filme. Sabe-se mais de Ciro, de suas ações, frustrações, do que dela.Quando muito que tem um sonho igual ao de tantas aspirantes ao mundo deslumbrante das modelos; o triunfar no exterior.
Retorno de Marcela parece artifício
Da forma como é retratada termina por ser apenas o objeto de desejo de Ciro. Fica no final a sensação de que faltou algo mais, uma abertura maior do espaço fílmico, para confirmar a atração entre eles, Ciro e Marcela, numa forma de amor sincera, aberta; nos tempos atuais. As cenas bem estruturadas não se expandem, acrescentando fatos e ações para além do já visto. E o ressurgimento de Marcela, na forma de redenção de Ciro, longe de representar uma saída para eles, parece mais um artifício. E melodramático. É como se Brant e Ciasca dissessem: a salvação pode vir do amor. Muitos dirão que sim. Há, no entanto, e o próprio filme o mostra, o exterior, onde o imponderável predomina. Como um filme não é um amontoado de cenas sem sentido e significado, sai-se do cinema com a sensação de uma ora inconclusa.
“Cão sem dono”. Brasil. Drama. 2007. 82 minutos.Diretores: Beto Brant, Renato Ciasca. Roteiro: Marçal Aquino, Beto Brant, Renato Ciasca, baseado no livro “Até o dia em que o cão morreu”, de Daniel Galera. Elenco: Júlio Andrade, Tainá Muller, Luiz Carlos V. Coelho, Marcos Contreras, Roberto Oliveira, Sandra Possani.