“Cartas de Iwo Jima”: A guerra da nobreza

Em tom pacifista, Clint Eastwood termina por mostrar as contradições entre a nobreza e os soldados japoneses que defenderam uma pequena ilha no oceano Pacífico, na Segunda Guerra Mundial

Dramas de guerra costumam nos enredar num dilema: torcemos por personagens que sabemos condenados à morte. E, na maioria das  vezes, estão presos a padrões éticos e morais difíceis de serem sustentados no campo de batalha. Estão ali lutando numa guerra que não é sua; pouco entendendo os motivos que os fazem defender um pedaço de terra perdida no meio do oceano. Não é diferente com “Cartas de Iwo Jima”(*), de Clint Eastwood, que mostra o lado japonês da famosa batalha pelo controle dessa estratégica ilha, imortalizada na foto-símbolo da guerra no Pacífico: a dos soldados americanos erguendo a bandeira ianque no topo da montanha. Baseado no livro com as cartas do general Tadamichi Kuribayashi, comandante das tropas do Exército Imperial no local, o filme narra os preparativos meticulosos para defender o que, de início, já lhe parecia indefensável. Os próprios soldados percebiam a inutilidade de se preparar para o combate, diante do que lhes parecia sem sentido.



          


A falta de sentido aqui não é da guerra propriamente, pois seu conteúdo estava marcado pela expansão do Império do Sol Nascente, liderado pelo Imperador Hirohito (1901/1989), no Oriente. Mas da compreensão que os soldados deveriam ter dela. Enquanto que para, o general-comandante Kuribayashi (Ken Watanabe), membro da elite japonesa, tratava-se de consolidar o poder de seu país, para eles, os 22 000 soldados, tudo se resumia à defesa da pátria e ao compromisso com o Imperador. Esta dualidade permeia todo o filme. Há todo momento, o padeiro Saego (Kazumari Ninomiya), agora soldado, hesitava entre lutar por ideais que não eram seus e o combate contra inimigos que não discernia. Não escondia o que pensava e por isso era perseguido a todo instante pelo tenente Okujo (Eijiro Ozaki) a que estava subordinado.


 


             


Estratégias absurdas


             


 


A essas fragilidades somaram-se outras, não menos graves, no campo de batalha. O general Kuribayashi, diante de um inimigo que sabia mortal, cercou-se de toda uma ética e moral, adversa à que estavam acostumados seus oficiais. Suas estratégias soaram-lhes absurdas, capazes de levar à derrota. Ao invés de trincheiras na praia para evitar o desembarque dos 26 000 soldados americanos, preferiu abrir túneis e cavernas no monte Suribachi, de onde poderia atacar os inimigos. E, ademais, seus tratos com os soldados eram “liberais demais”. Por diversas vezes repreendeu Okujo por estar preso demais ao draconiano código de honra japonês. Por isso, alguns deles se insurgiam, outros o viram como um fraco comandante. Por isto, o acusaram de ser simpatizante das tropas norte-americanas. Razões, eles tinham demais para vê-lo assim. Ele havia estudado nos EUA, sofrera adquirira outro método de se relacionar com os subordinados e obtivera modo diferente de estabelecer estratégias de combate. Torna-se, em suma, um “liberal”.



            


A imagem que Clint Eastwood passa dele é de um guerreiro-intelectual, que escreve cartas para a mulher em meio à batalha. E reflete sobre esta em termos de sobrevivência de seus comandados e não pelas baixas provocadas no inimigo. Um personagem fascinante, sem dúvida, sem nos abstermos de seus propósitos e do que representava de fato aquele combate numa ilha estratégica no Pacífico para os japoneses e as forças aliadas. O Japão era, durante a Segunda Guerra Mundial, o terceiro vértice do eixo, composto com Itália e Alemanha. Hiroito, Mussolini e Hitler tinham planos expansionistas e os executavam invadindo outros países, o que alastrou o conflito para muito além de suas fronteiras.


 


               


Salvar vidas era melhor


              


 


O Japão há muito ocupara a China (Janeiro/fevereiro de 1932) e invadira a Coréia (ainda não dividida), provocando milhões de mortes. Ainda hoje as feridas daqueles anos permanecem incuráveis. E Kuribayashi fazia parte do Estado Maior que levava adiante esta estratégia imperialista. Fosse diferente, não teria sido mandado para um comando que exigiria energia e visão da importância estratégica da ilha de Iwo Jima para a defesa do Japão. Tudo se mostrava contra ele, da ausência de armas e suprimentos à de soldados suficientes para uma empreitada que se mostrava suicida. São belas as imagens de sua inspeção pela praia, os exercícios feitos com seu imediato, os movimentos que fazia para enfrentar o inimigo. E, sobretudo, a flexibilidade com que trata os soldados frente às impossibilidades que sabia serem inúmeras.



               


O sentimento de que salvar vidas era melhor do que se atirar num confronto com o inimigo melhor aparelhado, se mostra ao longo do filme. E contrasta com o de Saego, cujo objetivo maior era sobreviver e voltar para sua padaria, sua mulher e sua filha que não conhecia. Propósito idêntico ao outros soldados. Um deles, Shimizu (Ryo Kase), suspeito de estar em sua companhia para espioná-los, sofre todo tipo de comentários e mal entendidos. Até que se revela hesitante, disposto também a escapar às armadilhas da guerra. Uma guerra que confrontava a visão do velho Japão, com seus duros códigos de honra, mantidos pelos oficiais e alguns soldados mais velhos, e dos jovens japoneses que se horrorizavam com o auto-sacrifício em nome do País e do Imperador Hirohito, que assumiu o trono aos 20 anos, em 1921, e na Segunda Guerra Mundial dividia o poder com o primeiro-ministro, general Hideki Tojo.


                  
     


Defesa da ilha era insensato


                


 


É nessa dualidade que o republicano Clint Eastwood, ex-prefeito da pequena cidade de Carmel, na Califórnia, revelou-se um pacifista. Os mais jovens, como já observado, não entendiam a guerra contra os EUA como algo necessário, que os fariam lutar pelo “Império do Sol Nascente”. Queriam cuidar de seus negócios, de sua vida e de sua família. Defender uma ilha deserta, com uma faixa de praia, um campo de pouso e um monte, o Suribachi, não lhes parecia sensato. Embora tenha demonstrado simpatia por Kuribayashi, é em Saego que Eastwood centra a ação de seu filme. O espectador torce para que ele sobreviva ao massacre que passa a ser a invasão de Iwo Jima, porque não defende os interesses do Imperador e da aristocracia a que pertence o barão-coronel Nishi (Tsuyoshi Ihara) e à elite integrada por
Kuribayashi. Este o entende e faz o que pode para não levá-lo ao confronto direto com as tropas norte-americanas.



               


Portanto a visão pacifista de Clint Eastwood está em tomar partido pelo soldado Saego e penalizar o tenente Ito (Shido Kakamura), fascista defensor das tradições nipônicas. Está sempre a exigir sacrifício de seus subordinados, mas suas trapaças no campo de batalha terminam por denunciá-lo. A guerra não cabe, porém, em esquemas, análises e estruturas cinematográficas. Eastwood ao tornar Kuribayashi um herói, ao velho estilo dos comandantes que se martirizam diante do subordinado, deixa de lado as implicações de seu gesto. Ele, que percebera desde o início a inutilidade de sua tarefa, permite-se um instante de glória, ao manter a tradição do sacrifício e não se entregar ao inimigo, decisão admissível diante da derrota. Desta forma, insere-se na galeria dos heróis, uma vez que se tornou maior do que sua derrota, ao ter comportamento digno com os subordinados e não seguir o código de honra do Exército Imperial. Este impunha que, em caso de derrota, oficiais e subordinados deveriam suicidar. O espectador compreende e abraça essa visão de que estava diante de um homem, um militar, diferente.


 


                  


Era necessário derrotar o Japão


                 


 


Ao estar diante desta visão, ficamos com a impressão de que o gesto de Kuribayashi encerrou o combate. As verdadeiras implicações poderiam ser esquecidas, negligenciadas. A história, porém, nos faz relembrar o significado daquela batalha. O controle da ilha de Iwo Jima pelos aliados, configurados então nas forças norte-americanas, tornava vulnerável a defesa japonesa no Pacífico. Enfraquecia o terceiro vértice do nazi-fascismo (os outros eram a Alemanha, de Hitler, e a Itália, de Mussolini). Permitia atacar, a partir dali, as forças japonesas e levar Hirohito à derrota. Era, portanto, uma necessidade. Através de seu domínio, poder-se-ia ter campos aéreos para pousos e reabastecimento de bombardeiros para ataque direto ao território japonês. A antipatia adquirida pelos EUA no período pós-guerra obscurece este fato. Mas dá a dimensão do que viria depois. Numa seqüência antes dos combates, quando os soldados nipônicos ainda preparavam suas defesas, eles comentam que os norte-americanos não os atacariam com virulência, por lhes faltar a tenacidade necessária para enfrentá-los.



                


No primeiro ataque, numa ação da força aérea norte-americana, com bombas explodindo por toda a extensão da ilha, eles percebem que não seria bem assim. Na guerra, como diria Clausewitz, não há espaço para a concessão ou, no caso de Iwo Jima, para a compaixão. OS EUA o provariam meses depois ao lançarem sobre Hiroshima e Nagasaki as bombas que inauguraram a Era Nuclear no planeta. Mais de duzentas mil pessoas, entre crianças, velhos, jovens e adultos, viram o sonho do “Império do Sol Nascente” se esboroar com suas mortes. A ferocidade americana ainda não arrefeceu. Os japoneses foram os primeiros a senti-la numa guerra total, a que emprega tropas e tecnologia da mais alta potência. Vietnamitas e coreanos, em momentos distintos da história também, a sentiram, os iraquianos ainda a sentem.


 


                 


Ser humano quer sobreviver


              


 


 “Cartas de Iwo Jima” evoca o momento preciso da guerra em que soldados não distinguem entre o inimigo que se rende e o ser humano que quer sobreviver. É chocante a cena em que Shimizu e outro soldado se entregam, agarrados à bandeira branca e são executados pelos soldados norte-americanos. Ficamos com a certeza de que os motivos das potências e das elites burguesas que a provocam são em nome dos negócios e do domínio de mercados e povos para exercer o poder, que chegam às camadas de trabalhadores (Saego, no caso, é um padeiro), como iniciativa necessária à manutenção da paz, à defesa da pátria e, no exemplo do Japão, em nome do Imperador. Não é à toa que os trabalhadores devem saber se a guerra é de seu interesse, contra o inimigo que o subjuga, ou se contra povos que serão subjugados para manter a burguesia no poder. Discernir entre um e outro, é uma tarefa que continua atual.



         


 A “Operação Detachment”,  iniciada em 16 de fevereiro de 1945, portanto nos instantes finais da Segunda Guerra Mundial, não foi um passeio ao farol. A estratégia de Kuribayashi a estendeu até 26 de março de 1945, sem deixar de registrar pesadas baixas para suas tropas e também para as norte-americanas. Os EUA tiveram sete mil mortos e 19 mil feridos, enquanto o Japão teve 21 800 mortos e 200 feridos. Eastwood mostra a dimensão desses combates nas informações que chegam, aos poucos, a Kuribayashi, em seu bunker. Os reforços não aparecem, a munição acaba, as frentes de defesa caem uma a uma. Ele vai percebendo a grandiosidade da tragédia e procura se manter no controle da situação, embora ela lhe escape a cada redução de seu espaço de manobra. Não poderia ser diferente, numa guerra contra o nazi-fascismo, que ele defendia.



            


“Cartas de Iwo Jima” não é um filme simples. Com “A Conquista da Honra” forma um conjunto que pretende mostrar as conseqüências da guerra para aqueles que combatem, não os que a comandam. Bem diferente de “Areias de Iwo Jima” (1949), de Alan Dawn, mais interessado em retratar o heroísmo dos soldados americanos sem particularizar suas emoções e visões. No momento em que a guerra virou uma forma de invadir países para obter petróleo, como o faz os EUA no Iraque, os filmes de Clint Eastwood permitem analisar o porquê das guerras. A Segunda Guerra Mundial opôs visões diferentes de se construir a sociedade, de um lado o nazi-fascismo, de outro os países que buscavam regimes democráticos e democráticos-populares, socialistas. E as de hoje, comandadas pelos EUA, têm caráter nitidamente econômico-imperialista. Se a primeira se mostrava injusta e desumana, as de hoje, além disso, são a mais pura barbárie. 


 


 


“Cartas de Iwo Jima” (Letters from Iwo Jima). Drama, EUA, 140 minutos, 2006.  Roteiro: Iris Yamashita, baseado em livro de Tadamichi Kuribayashi e em história de sua autoria e de Paul Haggis. Direção: Clint Eastwood. Elenco: Ken Watanabe, Kazunani Ninomiya, Tsuyoshi Ihara, Ryo Kase, Shido Kakamura, Eijiro Osaki.



(*) Candidato a Quatro Oscar: Filme, Diretor, Roteiro Original e Som.        

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