Casos Gaúchos Para a Comissão da Verdade!*

Passados tantos anos, a memória se esvai, a História se esfumaça, a verdade desaparece? Talvez não, no caso de Cilon Cunha Brum e Joaquim Pires Cerveira.

Em um artigo escrito há seis anos, tentei demonstrar parte das “seqüelas” do centro do Rio Grande do Sul diante do Golpe Civil-Militar e da Ditadura Pós-1964. [1] No texto, afirmei “que Santa Maria e outros municípios da região se tornaram cidades partidas”, com desaparecidos políticos nascidos ou que aqui viveram, como Cilon da Cunha Brum, Luiz Renato Pires de Almeida, Luiz Eurico Tejera Lisboa e Joaquim Pires Cerveira.

Cilon da Cunha Brum nasceu em São Sepé em 1946, militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), desapareceu durante a Guerrilha do Araguaia, no natal de 1973; Luiz Renato Pires de Almeida é natural de Formigueiro, quando o distrito pertencia a São Sepé, nascido em 1944. Chegou a cursar o Curso de Técnico Agrícola na UFSM. Em inícios de outubro de 1970, nas regiões de Masapar e Haicura, a 300 km de La Paz, Luis Renato e outros companheiros caíram mortos pelas tropas bolivianas, estando desaparecido até hoje. Era militante do Exército de Libertação Nacional (ELN); Luiz Eurico Tejera Lisbôa, o companheiro de Suzana e irmão do compositor gaúcho Nei Lisboa, que estudou economia na UFSM, militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), foi morto em São Paulo em setembro de 1972; Joaquim Pires Cerveira, militar e militante da Frente de Libertação Nacional (FLN), desaparecido desde 1973, nascido em Santa Maria, em 14 de dezembro de 1923 e filho de Marcelo Pires e Auricela Goulart Cerveira.

Passados quase 50 anos do Golpe que derrubou João Goulart, eis que a História começa a desvendar cada vez mais os segredos da Ditadura de Segurança Nacional e do terrorismo de Estado implantado no Brasil.

A pressão de setores da sociedade civil , quando familiares passaram a procurar seus desaparecidos, começou desde os tempos dos Comitês pela Anistia, na década de 1970. Passou pela organização dos grupos Tortura Nunca Mais, quando se consolidou a imagem internacional do Brasil sobre uma Ditadura que não se contentou em prender e exilar seus oponentes, mas torturou nos porões da Operação Bandeirantes (OBAN), dos CODI-DOI e das DOPS, até a morte, se necessário. Hoje, chega-se aos Comitês pelo Direito à Memória e à Verdade, como o de Santa Maria, lançado em 2011, em atividade realizada no Plenário da Câmara de Vereadores. A iniciativa vem surtindo efeito, mesmo que de forma lenta e gradual, não para a vingança ou a revanche, como alardeiam seus detratores, mas para que o País responsabilize historicamente os crimes imprescritíveis (como a tortura e o seqüestro) praticados pelo Estado Brasileiro e, finalmente, avance na consolidação democrática.

Em junho de 2009, Sebastião Curió Rodrigues de Moura, depois de 34 anos, abriu seu arquivo sobre a Guerrilha do Araguaia (1972-1975), nosso pequeno Vietnam, confirmando a prisão e a execução de 41 militantes nas bases das Forças Armadas, contrariando a versão oficial de que foram mortos em confronto. Os documentos privados do major Curió, um dos principais nomes na história da infâmia do Brasil e líder da Terceira Campanha contra os guerrilheiros, mostraram que, através da Operação Marajoara, nas bases de Xambioá, Marabá e Bacaba, atual Sul do Pará e Norte do Tocantins, foi organizado não apenas centros de repressão. Macabros locais de eliminação física dos oponentes, depois de submetidos ao domínio do Estado e contrariando as normas internacionais de guerra, foi a prática recorrente durante o governo de Emílio Garrastazu Médici, continuada com Ernesto Geisel.
Entre eles, o gaúcho Cilon da Cunha Brum, o Cumprido ou Simão, aos 28 anos, como uma das vítimas da guerra de guerrilhas intensificada pela repressão no Natal anterior, capturado em janeiro de 1974 e assassinado logo em seguida.[2]

Na ocasião, com as declarações de Curió, o jornalista Lino Brum Filho, irmão de Cilon e filho de Eloah Cunha Brum, uma das mães pioneiras que buscaram seus filhos ainda durante a Ditadura, escreveu um pequeno artigo chamado Sem perdão. No texto, argumentou que “revelações, feitas por um dos comandantes da operação militar, são aterrorizantes para qualquer pessoa de consciência política mediana e geram sentimentos das mais variadas naturezas, como, revolta, raiva, desprezo, indignação e até mesmo vergonha (…) porque, desde os primórdios da civilização, os familiares têm o direito de dar sepultura digna a seus entes (…) Esses torturadores/assassinos não poderão ficar no esquecimento e não merecem o perdão”.[3] De lá para cá, Curió nada mais disse, enquanto o cemitério de São Sepé continua com um túmulo e uma foto a espera de um corpo.

Passado algum tempo, nova revelação estarrecedora aparece. Sim, parece que a Ditadura Brasileira teve o seu Auschwitz-Birkenau. Cláudio Antônio Guerra, ex-delegado do Departamento de Operações Políticas e Sociais (DOPS) no Espírito Santo, no livro Memórias de uma guerra suja, declarou aos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros mais um capítulo de uma história que ainda não acabou. Na obra recém-lançada, Guerra revelou que participou da ocultação dos cadáveres de dez presos políticos, entre eles, o santamariense Joaquim Pires Cerveira.. Cerveira estava desaparecido desde 5 de dezembro de 1973, quando foi seqüestrado em Buenos Aires pela equipe do Delegado Sérgio Fleury, provavelmente em uma ação articulada pela Operação Condor.[4]

De acordo com o ex-delegado, por sua sugestão, os militantes foram eliminados em uma usina de açúcar no norte do Rio de Janeiro, chamada Cambahyba, de propriedade do ex-vice-governador do Rio de Janeiro Heli Ribeiro, o qual recebia armas do Exército para combater sem-terras da região. A idéia da utilização de altos fornos para exterminar cadáveres teria vindo do próprio Cláudio Guerra, que confessa ter incinerado Joaquim Pires Cerveira, entre outros.

Santa Maria e região que saber muito mais para que acabe o sofrimento de familiares, como da família Cunha Brum, que clama pelo paradeiro final de Cilon; quer saber mais sobre os presos que saíram daqui para a DOPS de Porto Alegre ou quartéis de Bagé e nestes locais sofreram vários tipos de sevícias e tortura psicológica; quer saber sobre os presos e torturados em Santa Maria, como os ferroviários Onofre Ilha. Dorneles e Baltazar Mello; quer saber dos arquivos da repressão na UFSM, em torno da Assessoria Especial de Segurança e Informações (AESI), que funcionou no prédio da Reitoria. Enfim, entre tantas outras coisas, quer saber de uma memória que está ocultada e guardada por “cães de guerra”, uma verdade que precisa ser revelada urgentemente. Sem isso não haverá justiça de transição em nossa cidade, nossa região, nosso estado e nosso Brasil.

Tudo isso será parte do trabalho da Comissão da Verdade e de seus membros nomeados recentemente por Dilma Roussef, uma vitória dos brasileiros que lutaram pela democracia e foram mártires, uma vitória dos exilados e torturados que sobreviveram, uma vitória de todos aqueles que não querem meias-verdades sobre um dos períodos mais nefastos da formação social brasileira.
Até para que Cilon Cunha Brum e Joaquim Pires Cerveira[5], assim como Luiz Renato Pires de Almeida e Luiz Eurico Tejera Lisboa entrem para os nossos livros pela porta da frente da História.

* Este artigo teve as suas idéias principais apresentadas no artigo “Pela porta da frente da História”, publicado no Diário de Santa Maria, no Caderno Mix-Idéias, na edição de 12/13 de maio de 2012, p. 14-15.

Referências
[1] KONRAD, Diorge Alceno. Seqüelas de Santa Maria: Memórias do apoio e da resistência ao Golpe de 1964. In. PADRÓS, Enrique Serra (org.). As ditaduras de segurança nacional: Brasil e Cone Sul. Porto Alegre: Comissão do Acervo da Luta contra a Ditadura/CORAG, 2006, p.100-108.
[2] Curió abriu seus arquivos ao jornal O Estado de São Paulo e logo em seguida a Revista Veja. Ver: Curió abre arquivo e revela que Exército executou 41 no Araguaia. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,curio-abre-arquivo-e-revela-que-exercito-executou-41-no-araguaia,390566,0.htm?reload=y. Acesso em 6 mai. 2012.
[3] O artigo foi publicado no Diário de Santa Maria, edição n. 2.228, em 04 de julho de 2009, p. 4.
[4] No Brasil foi conhecida como Carcará, sendo uma aliança político-militar entre as Ditaduras chilena, argentina, paraguaia, brasileira e uruguaia e que tinha por objetivo eliminar líderes de esquerda e de oposição.
[5] Ver mais sobre Cerveira e Cilon em: Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985). São Paulo: Instituto de Estudos sobre a Violência do Estado/Imprensa Oficial, 2009, respectivamente p. 508-12 e 544. Especificamente sobre Cilon, indico a obra recém lançada de Liniane Haag Brum. Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2012.

Cilon Cunha Brum

Disponível em: http://www.torturanuncamais-rj.org.br/MDDetalhes.asp?CodMortosDesaparecidos=199

Capa do Livro de Liniane Brum sobre seu Tio
Disponível em: http://arquipelagoeditorial.com.br/blog/

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