Cientista virou consultor?
“O cientista está comprometido com a produção de conhecimento novo, baseado em métodos rigorosos, revisão crítica por pares e liberdade intelectual. Já o consultor atua aplicando conhecimentos existentes para resolver problemas específicos e oferecer respostas práticas, muitas vezes sob a demanda de clientes com objetivos claramente definidos”
Publicado 02/05/2025 13:23

Recebo um artigo de meu amigo Antônio Márcio Buainain, “Ciência e tecnologia: a urgência de um compromisso do setor privado”, com temas interessantes. Chama minha atenção.
Um questionamento que se faz é sobre a diferença entre cientista e consultor, tema que sempre me inquietou e me traz ponto de reflexão. No fundo, há uma discussão de quem deve financiar a ciência e a tecnologia, entendida como a aplicação prática do conhecimento em prol do benefício da sociedade.
Comparando com outros países, mostra uma inversão de valores no nosso modelo e afirma: “O modelo predominante em nosso país ainda considera que o investimento em ciência é uma responsabilidade quase exclusiva do Estado.”
Mas, não é esse o ponto que quero focar e sim em outro aspecto que me parece relevante e é pouco tratado pelos nossos formuladores de política, a não trivial confusão entre os papeis dos cientistas e consultores. Didaticamente, afirma:
“O cientista está comprometido com a produção de conhecimento novo, baseado em métodos rigorosos, revisão crítica por pares e liberdade intelectual. Já o consultor atua aplicando conhecimentos existentes para resolver problemas específicos e oferecer respostas práticas, muitas vezes sob a demanda de clientes com objetivos claramente definidos.
”E adiante acrescenta:
“Quando esses papéis se confundem – seja porque o cientista veste o chapéu do consultor sem declarar, seja porque se engaja em causas políticas ou ideológicas sob a autoridade da ciência –, cria-se um ruído que mina a confiança do público e dificulta o diálogo honesto com o setor produtivo.”
Ou seja, sempre que o “cientista esteja a serviço de interesses específicos – como se fosse um consultor contratado para validar decisões previamente tomadas”, sem deixar claro que é este papel que está a desempenhar, gera-se um ambiente de desconfiança e nada produtivo, levando a resultados nada interessantes. E alerta:
“Infelizmente, entre nós ainda predomina uma visão utilitarista e reativa: busca-se a ciência apenas quando ela “ajuda” a sustentar determinada posição. Pouco se investe em estruturas permanentes, em linhas de pesquisa de longo prazo ou em parcerias genuínas com centros acadêmicos. O resultado é um sistema vulnerável e suscetível a interferências, inclusive políticas.”
Com esse quadro exposto, fico me indagando o que acontece com as Fundações de Amparo à Pesquisa. Pressões políticas existem, leis difíceis de cumprir também. Para conseguir o cumprimento do que é estabelecido em leis são cobradas quanto à “utilidade” real dessas aplicações e obrigadas a gerar programas muitas vezes viesados e atendendo a objetivos de grupos de interesse e, principalmente, políticos.
A Constituição de 1988 deu as condições para que se pensasse o desenvolvimento do País de uma maneira mais objetiva. Deixava claro que uma articulação efetiva entre o projeto de desenvolvimento e a área do conhecimento fazia-se necessária. Com isso deu-se as condições de criação das Fundações de Amparo à Pesquisa-FAPs, hoje, existentes em todos os Estados da Federação.
Com a Lei Florestan Fernandes criavam-se as condições de vinculação orçamentária obrigatória para a área de ciência, tecnologia e inovação e muitos Estados aderiram a esse modelo, sendo Pernambuco o primeiro pós Constituição.
O problema era que se geravam condições para atritos intra governamentais. Os recursos que deveriam ser destinados não eram desprezíveis e concorriam com outras áreas, também prioritárias.
Orçamentos limitados, com vinculações grandes para áreas já predefinidas, como saúde e educação, traziam dificuldades operacionais para novas demandas quase ilimitadas. Com isso, longos processos de contingenciamento e não liberações foram e são enfrentados. Era preciso criar mecanismos que minorassem as reações contrárias. Era importante a adesão das instâncias decisórias do estado, principalmente as ligadas ao planejamento e liberação financeira.
Procurou-se entender o que se esperava do setor. Com recursos limitados do setor privado, em muitas regiões quase inexistentes, com a contenção de recursos federais para a área, que enfrentamos por quase uma década, o foco teria que ser sensibilizar os governos locais e fazê-los cumprir o que era determinado em lei. Daí surge o problema e retomo a confusão propositalmente criada entre cientistas e consultores.
Criam-se programas para tentar dar maior interação entre as diferentes instâncias do Governo e a dita Comunidade Científica.
O Estado do Ceará, por exemplo, criou um programa que visou atenuar essas dificuldades, o de Cientista Chefe. Fazia com que recursos da FAP fossem orientados para resolver problemas enfrentados pelas Secretarias. Chamaram de Cientistas Chefes, profissionais altamente qualificados da área do Conhecimento, principalmente das universidades, que dariam suporte ao enfrentar de ações estratégicas com dificuldades operacionais. Mas, dentro de parâmetros predefinidos pelo Governo e que limitava a busca de conhecimento novo ou de ações inovadoras.
Estados criam programas internos, com comissões multi-secretarias que definem pautas em que, aqueles que quiserem recursos públicos devem se enquadrar. Pernambuco, por exemplo,cria a Usina de inovação com recursos do único fundo específico com recursos das empresas incentivadas, para apoiar ações específicas das Secretarias. Mais de modernização, não caracterizaria de inovação.
Num primeiro momento, sem desprezar a idéia, optou-se por modelos diferentes. As instituições estaduais de pesquisa e desenvolvimento que seriam responsabilidade das Secretarias fins como Agricultura, Indústria ou Saúde, por exemplo, que estavam e estão sucateadas e precisavam de uma reorientação para sua sobrevivência, ou manutenção das atividades de tecnologia e inovação, passam a ser responsabilidade de complementação financeira, apenas no que tange à infraestrutura e pessoal, das chamadas Fundações de Amparo.
Evidentemente, esses programas diminuem a capacidade de financiamento à inovação e desenvolvimento em muito, atrelando a preocupações que resolvam problemas momentâneos do Estado.
Bom notar que esses programas não se atém às instituições da área, não são mais específico para as instituições da área de desenvolvimento e inovação, mas sim para qualquer instituição governamental que apresente um problema específico um pouco mais complexo, inclusive de atualização tecnológica ou modernização. Para sua implantação são feitos editais que escolhem o grupo de pesquisa para a solução do problema.
Parece interessante, mas podem ser vistos alguns problemas:
- Nos primeiros editais lançados, nitidamente, pode ser visto que são consultorias especializadas. Temas como Gestão e Análise de Dados, Otimização de Plataformas Cooperativas e Avaliação de Políticas de C&T são trabalhos que sempre foram contratados pelas Secretarias na forma de serviços especializados e não como projetos de pesquisa. Pior, não há um projeto estratégico de desenvolvimento que assegure serem temas relevantes para o Estado que se deseja em um futuro mesmo que próximo;
- As instituições do conhecimento, Universidades e Centros de Pesquisa, sempre colaboraram e se dispuseram a direcionar trabalhos específicos, na forma de consultorias contratadas. Agora se muda o foco, passam a ser compreendidas como pesquisas para a inovação, embora sejam fortemente direcionadas para interesses específicos e resultados predefinidos;
- Ao lançar editais, se transforma consultorias em pesquisas. Com isso, se ampliam os prazos e se direcionam bolsas para os pesquisadores. O custo é bem maior. Trabalhos que poderiam ser equacionados em poucos meses, são construídos com planos de trabalho para períodos largos, em geral dois anos. O resultado passa a ser questionável. Não fica claro se o objetivo é a resolução do problema ou a estruturação e consolidação de um grupo de pesquisa que apresente resultados acadêmicos;
- Com isso se alivia os orçamentos das Secretarias e Instituições Específicas, mas se onera a FAP, o que faz com que recursos significativos do orçamento anual sejam direcionados para resolver problemas financeiros dos outros órgãos governamentais, sem nenhuma contrapartida prevista;
- Nos editais lançados e projetos aprovados não se nota preocupação com a capacitação das equipes governamentais. Parece que são equipes que devem dar apenas suporte para os grupos acadêmicos;
- Enquanto isso, as instituições efetivamente de pesquisa, desenvolvimento e inovação do estado continuam em graves crises, não sendo criadas ações que venham solucionar esse problema.
Com essa lógica, diminui-se a resistência intra Governo e aumenta-se a adesão dos organismos decisórios. Num mundo em que a Manufatura tem profundas modificações, em que a Inteligência Artificial surge como mecanismo de reestruturação em todas as dimensões, em que as relações de trabalho se alteram profundamente, estar preso a um modelo em que a contribuição da área do conhecimento se atém a plataformas e modelos de controle do velho paradigma parecem não ser o mais interessante.
Não há nada de estratégico nisso, satisfaz a comunidade acadêmica com recursos adicionais, mas não traz fatores significativos para a mudança necessária no mundo em constante transformação. Um erro de concepção.