Confidências de um Guerrilheiro

Escreveram-se muitas coisas sobre a esquerda armada brasileira no pós-1964, mas ainda falta muito a ser desvendado. Ao longo desses últimos anos, inúmeros autores procuraram colocar o seu tijolo neste grande edifício chamado história da resistência à dita

Confidência de um Guerrilheiro de Teobaldo Branco se insere neste processo de construção de parte da trajetória de lutas de nosso povo na segunda metade do século 20. A guerrilha do Alto Uruguai, mais conhecida como a Guerrilha do Coronel Cardim, foi um acontecimento importante e ainda pouco conhecido entre nós. Mesmo obras fundamentais sobre a luta armada no Brasil, como o excelente “Combates nas Trevas” de Jacob Gorender, dedicaram-lhe alguns poucos parágrafos.


 



Acredito que o simples fato de ter sido o primeiro movimento armado de contestação à ditadura, mesmo com todas as suas vicissitudes, já o coloca num lugar de honra em nosso processo revolucionário. No entanto, vêm desenvolvendo-se na academia – e na “grande mídia” – certas “teses” que visam diminuir a importância dos movimentos armados no processo de conquista da democracia. Muitos chegam mesmo a culpar a ação da esquerda revolucionária pela implantação e, depois, radicalização do regime militar. Esta é uma clara operação ideológica que visa incriminar as próprias vítimas pelos anos sombrios no qual vivemos entre as décadas de 1960 e 1970. 


 


Esses ideólogos conservadores escamoteiam o fato de que foi, justamente, o golpe militar de 1964 que levou setores importantes da esquerda à frustração em relação aos métodos pacíficos de luta. O “golpe dentro do golpe”, ocorrido em dezembro de 1968, apenas exacerbou este sentimento. Na prática, os caminhos legais de contestação ao regime ficaram bastante restritos. É só a partir deste momento que a opção armada tornou-se quase que um imperativo para todos aqueles que não quiseram ficar de braços cruzados diante do arbítrio crescente. 


 


Os acontecimentos que se seguiram ao golpe de Estado levaram a cisão do maior partido da esquerda brasileira: o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Ele era, na época, o principal defensor do “caminho pacífico”. Desta organização saíram para ingressar na luta armada a Ação Libertadora  Libertadora (ALN), o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). De outras vertentes da esquerda socialista nasceu, por exemplo, a Vanguarda Popular Revolucionaria (VPR). Houve um verdadeiro processo de ampliação e pulverização da esquerda armada brasileira naqueles anos.


 


Não podemos dizer categoricamente que, caso não houvesse golpe militar de 1964, não haveria a formação de grupos guerrilheiros no país. Mas, se tivessem existido, não teriam tido a mesma expressão social e nem teriam marcado tanto os seus nomes na história brasileira. O próprio Guevara chegou a constatar que as democracias – ainda que burguesas – não eram terrenos favoráveis a utilização de métodos guerrilheiros. As raríssimas exceções apenas confirmam a regra. 


 


 


Assim, nem o golpe militar nem a decretação do AI-5 foram respostas tardias das elites reacionárias brasileiras à luta armada promovida por uma “esquerda irresponsável”. Foram ações preventivas contra o avanço do movimento democrático e popular; isto é, momentos da contra-revolução burguesa no Brasil. É claro que a direita usou o medo da insurreição comunista como pretexto de sua ação. 


 


 


Por isso, a guerrilha do Alto Uruguai não pode ser entendida, plenamente, desvinculada do fato de existir uma ditadura militar recém implantada no Brasil. Se o golpe não tivesse abruptamente interrompido a legalidade democrática e posto um fim a perspectiva de uma transformação progressista – e pacífica – da sociedade brasileira, não haveria as condições subjetivas para a formação de grupos armados com um mínimo de apoio popular naquela conjuntura.


 


 


Teobaldo Branco, neste livro, vai ainda mais longe e rastreia as origens remotas das opções políticas feitas pelas correntes nacionalistas das esquerdas gaúchas. Passa pela experiência da Revolução de 1930, pelas rebeliões tenentistas de 1922 e 1924, pela coluna Prestes e, por fim, pelo importante movimento em defesa da posse de Jango, ocorrido em 1961. Especialmente este último iria marcar muito os jovens combatentes liderados pelo Coronel Cardim. A vitória popular contra as forças golpistas elevou a auto-estima dos setores da esquerda nacionalista. A derrota em 1964 – e a falta de uma resistência à altura – foi como um banho de água fria em qualquer perspectiva mudancista. Ficou na boca o gosto amargo de uma derrota … sem luta.


 


 


Num primeiro momento o setor mais exaltado era o dos militares – especialmente os praças e a baixa oficialidade – que haviam tido um grande papel no período final da crise do governo Jango. Os seus elementos mais engajados, em grande parte, aderiram ao brizolismo radicalizado e passaram a defender a necessidade da constituição imediata de um movimento armado para a derrubada da ditadura. A ideologia desses militares – e de vários civis – rebeldes era uma mescla de nacionalismo e socialismo. Compartilhavam uma interpretação da revolução cubana, encarada como a realização de uma pequena vanguarda armada escondida nas serras. Por fim, tinham a convicção de que o regime militar  já nascia fragilizado e que bastava um sinal para que uma revolta civil-militar começasse.


 


 


Sem dúvida, existia muita – e generosa – ilusão nestas avaliações. As coisas não seriam tão fáceis como pensavam aqueles revolucionários românticos. O regime ainda estava relativamente forte e, por outro lado, o foquismo – com um forte viés militarista – acabou mostrando todos os seus limites. Mas, é claro, não podemos exigir que os atores daquela façanha memorável tivessem a mesma compreensão que temos hoje sobre o processo revolucionário brasileiro. Foi, justamente, através dos erros e acertos daqueles pioneiros que fomos aprendendo como e para onde devemos caminhar.


 


 


O autor dá a palavra, em longas entrevistas, aos agentes e testemunhas daquele movimento que agitou o sul do Brasil. Ele não pretende dar-lhes lição, como o fazem alguns bedéis da revolução. Enaltece suas qualidade e compreende suas deficiências. E, principalmente, guarda para a posteridade um pouco desta história que as classes dominantes retrógradas tentaram destruir pelas baionetas e pelo silêncio. Aqueles poucos guerrilheiros que “tentaram tomar o céu de assalto” merecem entrar no panteão dos heróis nacionais. Local onde, atualmente, se encontram Carlos Lamarca, Carlos Marighella, Mário Alves, Maurício Grabóis, Osvaldão, Frei Tito e tantos outros.


 


 


Os homens que foram seus algozes continuam impunes. As viúvas do antigo regime argumentam que a anistia, conquistada pelo povo nas ruas e nas praças, se estendeu também a eles. Afirmam que ela significa o esquecimento (e perdão) dos crimes cometidos pela ditadura. Essa interpretação distorcida levou com que, no Brasil, não houvesse eqüidade no tratamento entre os carrascos e suas vítimas. Os que se levantaram contra uma ordem ditatorial injusta pagaram caro pelos seus atos.


 


 


Sofreram demissões, prisões, torturas, exílios e mortes. Os criminosos, que violaram a sua própria constituição, não sofreram nenhum tipo de punição e muitos ainda acabaram sendo beneficiados com promoções indevidas. Chegou o momento de começar a mudar esta situação iníqua e o livro de Teobaldo Branco é uma importante contribuição neste processo de restabelecimento da verdade e da justiça.


 


 


Nota


 


 


Esta é uma versão ligeiramente modificada da apresentação ao livro “Confidências de um guerrilheiro” de Teobaldo Branco.  A obra foi publicada pela editora Maneco de Caxias do Sul (RS). 

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