Continuam sangrando o Araguaia

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Já tenho visto muito absurdo nesta vida. Se já tive outra, ou se terei, não vejo evidência nem indício confiável. Sendo certo, então, que tudo que ocorre nesta é original e, até que sobrevenham novas informações, coisa única. Digo isto em razão do que estão fazendo com o rio Araguaia. È porque sei que a gente não vai ter outro. Não há no planeta rio mais belo e, se rio tivesse sentimento, mais gentil. O Araguaia tem jeito de mãe, de mulher amada. Não se demora nas corredeiras e cascatas. Prefere se espreguiçar em praias para o despudor do sol. Alarga-se para a liberdade dos cardumes. Tem arrepio e tremor de orgasmo. É silencioso para não espantar o canto das aves, os gritos dos guaribas, os rugidos das onças ou o arfar do senhor boto, que zomba da fama injusta que mora no imaginário dos ribeirinhos. Até seus antigos habitantes, os Carajás, preferiam a pesca, a cerâmica decorativa, as festas, canoas, a preciosa arte plumária, aos alaridos das guerras e o chocar das bordunas. Se rio pudesse ter natureza, a do Araguaia seria a de aconchegante fêmea, merecedora de amor e carinho, como já cantaram poetas e músicos da terra. Se pudesse ser olhado como gente, o Araguaia seria mesmo mulher: amante, namorada, mãe, filha ou irmã. Poucas vezes o Araguaia saiu de sua calmaria amorosa. Foram necessárias muitas agressões de tratores, dragas, desmatamentos, assoreamentos, para que ele deixasse o sereno álveo e irrompesse pelas margens, ocupasse os baixios, empurrasse os curichos, enfunasse os lagos. Nesse dia o rio virou madrasta, arrancou árvores, ilhou bichos, arrastou o que pôde. Até gente. Mas foi por pouco tempo. Logo retornou à sua dormência uberrima. Goiás não tem sabido merecer o Araguaia. Primeiro, deixaram as hordas de ganância invadir suas margens, matar seus primitivos habitantes. Estou falando dos índios. Também dos bichos. Antas, capivaras, cervos, tatus, jacarés, patos, lontras, tartarugas, catetos e queixadas. Coisa igual fizeram com os cardumes. Essa força da natureza que já vinha sofrendo com o assoreamento do rio, dos lagos, dos curichos, ainda enfrenta a fome dos anzóis, espinhéis, pindas, redes, bóias e até bombardeios de dinamite. Uma parca fiscalização tem diminuído um pouco essas agressões, quando não são os próprios encarregados da proteção que ferem a alma e o corpo do rio. Em verdade, o Araguaia em Goiás é um rio que está morrendo, não se iludam. Eu vi. Crianças, eu vi. Ali nas vizinhanças do Parque das Emas, em um socavão onde se aninha a nascente principal do Rio, em pedaço que Goiás perdeu para o Mato Grosso, até o barranco do ainda jovem curso, avança da lavoura de soja, que não respeita sequer a pobre vegetação ciliar. Às margens do rio, nos recessos dos lagos e dos afluentes, continua o desmatamento desordenado expondo o rosto arenoso do terreno que vai sendo baldeado para o fundo do vale, fazendo voçorocas nos declives despidos e assoreamento nos leitos. Outra ilusão é que o turismo no Araguaia, da forma como é feito, traz algum benefício. Nem posso dizer que é ledo engano. É tredo engano.

(Continuo na próxima quarta-feira)

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