Criminalização da pobreza e desqualificação moral dos pobres

 No momento em que o Brasil está em vias de entrar novamente para o mapa da fome, a criminalização da pobreza e a desqualificação moral dos pobres aparece com força no cenário social e político do país.

Não é um fato novo. A transformação de graves problemas sociais em questão de polícia remonta às primeiras décadas do século XIX, mais precisamente ao ano de 1830 quando foi aprovado o Código Criminal do Império. Desde então, o traço comum às legislações penais no Brasil tem sido a seletividade de classe na tipificação de crimes como “vadiagem” e “mendicância”, que, obviamente não visavam as classes abastadas quando foram previstos no já citado Código de 1830, mas também no primeiro Código Penal republicano de 1890 e no Código Penal de 1940, elaborado em pleno Estado Novo e que, mesmo tendo passado por várias alterações ao longo dos anos, ainda continua em vigor, uma vez que o projeto de um novo código penal encontra-se em tramitação no Parlamento Brasileiro.

O caráter patrimonialista da legislação penal brasileira tem servido como fundamento de práticas de criminalização da pobreza ao longo de nossa história. Mas, além da criminalização, um outro aspecto igualmente perverso também aparece nos discursos de ódio que o neoconservadorismo tupiniquim vem destilando nos últimos tempos. Trata-se da culpabilização do pobre por conta de sua própria condição – o que também não é novo, nem é algo restrito ao Brasil. A “poor law” , a lei dos pobres elisabetana, um conjunto de normatizações para, entre outros objetivos, regular o comportamento social dos pobres na Inglaterra e sistematizadas em um único corpo legal em 1601 é um exemplo. Nela, a pobreza era considerada “um defeito de caráter” a ser rigidamente controlado pelo Estado. Preguiça, vida dissoluta, ausência de valores morais eram atribuídos aos pobres e tomados como causa de sua pobreza. Assim, aparato penal e moralismo torpe, tem sido a formula conservadora quando se trata de exercer o controle e a repressão da parcela da sociedade impedida de acessar a parte da riqueza socialmente produzida e que lhe cabe por direito. Esta parcela da sociedade, que produz a riqueza mas que a ela não tem acesso é a que se convencionou chamar de “pobres”, o que esconde o seu conteúdo de classe.

A desqualificação moral dos pobres, assim como a criminalização da pobreza (como sendo esta o resultado de um desvio de caráter) possuem significados igualmente nefastos pois individualizam realidades que na verdade possuem determinantes sociais e políticos. Em outras palavras: retiram do Estado a responsabilidade de criar e gerir políticas públicas para o enfrentamento das condições que condenam milhões de pessoas a uma existência incompatível com padrões minimamente civilizados.

Ao falar sobre desqualificação moral dos pobres e criminalização da pobreza é impossível não fazer referência a dois fatos que exemplificam como parcela da sociedade e como o Estado brasileiro hoje incorporam essas questões. Exemplo típico de criminalização da pobreza é a intervenção federal com o uso da força militar em comunidades populares do Rio de Janeiro. Sob o pretexto de combate ao narcotráfico, comunidades inteiras são colocadas sob suspeitas ou aprioristicamente consideradas culpadas de envolvimento com atividades criminosas. Já a desqualificação moral dos pobres esteve presente nas inacreditáveis manifestações de “cidadãos de bem” que, apressadamente, culparam os moradores do edifício Wilton Paes de Almeida, localizado no centro de São Paulo, cujo incêndio seguido de desabamento matou pessoas e deixou desalojadas famílias inteiras que ali residiam. Críticas de cunho moralista e de culpabilização das vítimas, por se tratar de uma ocupação, assumiram a função de discurso legitimador para a morosidade do poder público em apresentar uma solução decente para as muitas famílias que, passado mais de um mês do ocorrido, ainda permanecem acampados em praça pública, sobrevivendo como podem com suas crianças, seus animais e seus poucos pertences, ali, no coração da cidade mais rica do país e maior metrópole da América Latina. São dois episódios emblemáticos aos quais pode ser acrescentado o caso recente da esterilização de uma mulher em situação de rua, ao que parece, sem sua autorização, reeditando a ideia fascista de que a pobreza existe porque os pobres têm muitos filhos.

Desconstruir discursos moralistas sobre os pobres e a pobreza, desmistificando teses que concentram nos indivíduos a responsabilidade exclusiva pelo “sucesso” ou “fracasso” é um grande desafio político. Concepções meritocráticas que provocam a indignação dos abastados – ou nem tanto – diante de políticas e programas sociais, ainda que meramente compensatórios, são fundadas sobre uma falaciosa igualdade de condições e de oportunidades alardeada pelo pensamento liberal.

Não há democracia possível quando a sociedade, movida pelo individualismo e pela lógica da competição, não reconhece que, para além das capacidades e méritos pessoais existem outros condicionantes que resultam de decisões políticas e que afetam diariamente a vida de milhões de pessoas compulsoriamente descartadas por uma sociabilidade predatória . Não há projeto civilizatório que sobreviva quando argumentos morais são usados para justificar a barbárie.

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