Crise na Ucrânia: os russos estão errados?

Com a decisão de pedir ingresso na Otan, o atual governo da Ucrânia, que Putin despreza, cruzou a linha vermelha

Foto: Governo ucraniano

A esta altura dos acontecimentos é impossível predizer qual será o desfecho da crise da Ucrânia. Os cenários prováveis são muitos, mas em todos eles é possível apontar um traço comum. É o presidente Putin quem está dando as cartas e a resolução final da crise será no tempo e na direção que a Rússia quiser. Ameaças econômicas e militares dos Estados Unidos e de alguns países da Europa não estão tendo nenhum efeito sobre as decisões de Putin. A única coisa que poderia tê-lo demovido de ação militar em larga escala teria sido a aceitação por parte dos Estados Unidos e da Otan das condições por ele impostas: a não entrada da Ucrânia na Otan e a retirada das armas e tropas americanas e europeias de países da Europa Oriental que, no passado recente, fizeram parte da extinta União Soviética. Mas isso já é passado.

A guerra de palavras já ficou para traz; a guerra real já começou. Putin justificou a ação militar alegando a defesa das duas regiões separatistas habitadas por russos étnicos, que a Rússia acaba de reconhecer como as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk. Pelo acordo de Minsk, assinado em 2015, a Ucrânia havia se comprometido a conceder autonomia a essas duas regiões, mas só não o fez como desencadeou uma ofensiva militar para retomar o controle da área que já deixou 14 mil mortos. Putin falou também em des-nazificar a Ucrânia, uma provável referência à sua intenção de desalojar o governo de extrema-direita que se instalou em Kiev desde 2014, quando o presidente eleito, Viktor Yanukovych, foi deposto por mais uma das “revoluções coloridas” patrocinadas pelos Estados Unidos na Europa Oriental.

O reconhecimento das duas repúblicas faz parte da estratégia de Putin para impedir a instalação de armas e tropas ocidentais dentro do que ele considera território russo. De quebra, resolve definitivamente o problema que vinha se arrastando há quase uma década e já deixado mais de 14 mil mortos. Ucrânia e Bielorrússia não são na visão de Putin dois países independentes, mas parte do território russo que Lenin e depois Stalin, como parte de sua política das nacionalidades (equivocada, na opinião de Putin), permitiram que se organizassem como repúblicas autônomas dentro da extinta União Soviética.

No caso da Ucrânia, os russos nunca cogitaram que aquela república autônoma da ex-URSS poderia se tornar um país independente, sobretudo por seus laços históricos e culturais com a Rússia (50% da população da Ucrânia tem o russo como primeira língua). Tanto isso é verdade que localizaram naquele território grande parte da capacidade industrial da antiga União Soviética e parte expressiva de seu arsenal atômico, que depois foi devolvido para a Rússia, quando da criação do país em 1991.

A aceitação da independência da Ucrânia foi, na visão de Putin, uma humilhação a que a Rússia foi submetida por ocasião da extinção da União Soviética. Tal situação foi tolerada por Putin enquanto a Ucrânia se manteve fora do alcance da Otan em seu movimento de cercamento da Rússia. Com a decisão de pedir ingresso na Otan, o atual governo da Ucrânia, que Putin despreza, cruzou a linha vermelha além da qual a Rússia não permite que a aliança ocidental comandada pelos Estados Unidos avance, o que na sua visão significa colocar armas e tropas americanas em território russo.

Exército estadunidesnse | Foto: Us army

No fundo, talvez os russos não estejam tão errados. Como observou o jornalista Thomas L. Friedman, em artigo publicado no jornal New York Times e republicado pelo jornal o Estado de São Paulo (23/02/2022), a decisão de expandir a Otan para os países  da Europa Oriental ao final da Guerra Fria foi uma provocação desnecessária dos Estados Unidos. No mencionado artigo Friedman arrola dois testemunhos insuspeitos: Bill Perry, ex-secretário de Defesa dos Estados Unidos no governo Clinton, e George Kennan, o arquiteto da política americana de contenção da União Soviética, que deu origem à chamada “Guerra Fria”.

Bill Perry, conforme relata o jornalista, ao recordar esse momento anos mais tarde ao público de uma conferência do jornal The Guardian:

Bil Perry, ex-Secretário de Defesa dos EUA | Foto: Glenn Fawcett/Wikimedia Commons

“Nos anos mais recentes, a maior parte da culpa pode ser atribuída às medidas adotadas por Putin. Mas, nos primeiros anos, devo dizer que os EUA merecem boa parte da culpa. Nossa primeira reação que deu início a esse rumo desastroso foi o início da expansão da Otan, incluindo países da Europa Oriental, alguns dos quais fazem fronteira com a Rússia. Na época, trabalhávamos em proximidade com a Rússia e eles começavam a se acostumar com a ideia de que a Otan poderia ser uma aliada, e não uma inimiga … mas ficaram muito abalados com a presença da Otan bem nas suas fronteiras, e fizeram um forte apelo para que não levássemos adiante esses planos.”

George Kennan, em conversa com o jornalista no dia 2 de maio de 1998, também não poupou críticas ao establishment belicista norte-americano. As palavras de Kennan, reproduzidas por Friedman no mencionado artigo:

George Kennan, diplomata estadunidense responsável pela elaboração de políticas anti-soviéticas durante a Guerra Fria | Foto: Reprodução

“Acredito que seja o início de uma nova guerra fria. Acho que os russos vão, gradualmente, reagir de maneira bastante adversa, o que será refletido nas políticas deles. Me parece um erro trágico. Não havia nenhuma razão para isso. Ninguém está ameaçando ninguém. Tal expansão faria os pais fundadores dos EUA revirarem nas suas tumbas.”

“Assinamos um acordo para proteger uma série de países, mesmo sem ter os recursos ou a intenção de fazê-lo com um mínimo de seriedade. (A expansão da Otan) foi simplesmente uma decisão leviana de um Senado sem nenhum interesse real nas questões internacionais. O que me incomoda é a superficialidade e falta de informação vistas ao longo desse debate no Senado. Fiquei particularmente incomodado com as referências à Rússia como se se tratasse de um país louco para atacar a Europa Ocidental.”

“Será que as pessoas não entendem? Na Guerra Fria, nossas diferenças eram com o regime comunista soviético. E agora estamos virando as costas justamente para o povo que realizou a maior revolução pacífica da história para derrubar esse regime soviético. E a democracia russa é, no mínimo, tão avançada quanto a desses países que acabamos de prometer que defenderemos da Rússia. É claro que a Rússia vai reagir mal, e então (os responsáveis pela expansão da Otan) dirão que eles sempre alertaram para essa personalidade russa — mas isso é simplesmente um erro.”

Por último, nunca é demais lembrar que o mundo esteve à beira de uma guerra nuclear quando a Rússia, a pedido de Fidel Castro, colocou seus misseis na ilha de Cuba. Por que seria diferente agora com a Ucrânia? Será que os russos estão tão errados assim?

Crise da Ucrânia consolida aliança entre Rússia e China e pode redesenhar ordem mundial

Foto: Xinhua

Logo depois que tomou posse, o presidente Biden, em sua primeira viagem à Europa para participar da reunião do G7, na Inglaterra, encontrou-se com o presidente Putin em Genebra para dizer que o problema dos Estados Unidos era agora com a China. Na prática, queria obter o apoio russo ou pelo menos sua neutralidade na grande frente anti-China que Biden estava tentando construir para superar a política isolacionista de Trump.

Os russos não embarcaram nessa história, pois viam na China um parceiro importante e, principalmente, um seguro contra as reiteradas sanções econômicas impostas à Rússia pelos Estados Unidos e União Europeia depois da Guerra da Criméia, em 2014. Afinal de contas, a China é um grande importador do principal produto de exportação russo, que é gás natural, além de petróleo, trigo e armas. Mas um passado de atritos e de desconfianças mútuas sempre manteve os chineses com um pé atrás em relação aos russos e vice-versa. A crise da Ucrânia parece que alterou qualitativamente esse jogo. De repente, russos e chineses se viram definitivamente no mesmo barco, o que levou os dois presidentes a declarem uma amizade “sem limites” entre as duas superpotências, o que nos conduz aos idos de 1930 e 1940.

Obviamente não é de interesse da China e nem da Rússia subverter a atual ordem global, mesmo que encabeçada pelos Estados Unidos. Afinal, foi à sombra dessa ordem centrada nos Estados Unidos e no dólar norte-americano que a China se inseriu virtuosamente no sistema econômico globalizado e conseguiu em menos de cinquenta anos transformar-se na segunda potência econômica do planeta em vias de tornar-se a primeira.

Não há nenhum líder mundial que defenda com mais entusiasmo as virtudes da globalização do que o presidente Xi Jinping. Na verdade, quem quer jogar a China para fora da economia globalizada são os Estados Unidos depois que passaram a vê-la como uma ameaça potencial à sua hegemonia global que eles pretendem que perdure por todo o século XXI, pelo menos.

A China resiste a isso e procura jogar pelas regras do multilateralismo consagrado nas instituições criadas em Bretton Woods no pós-guerra com os Estados Unidos e dólar à frente. No caso da Rússia, seus vínculos econômicos com a Europa Ocidental são profundos. É a principal fornecedora de energia para países importantes da região, como a Alemanha e a Itália. Também a ela não interessa criar uma briga em casa, ou seja, no continente europeu, por causa do distante e belicoso Estados Unidos.

Mas o futuro se constrói dentro das circunstâncias que nos são impostas, não há como escapar disso. E as circunstâncias colocaram Rússia e China definitivamente no mesmo barco. Caso não consigam se manter aceitas na atual ordem mundial comandada pelos Estado Unidos, unidas Rússia e China podem não só apoiar-se mutuamente, tanto econômica quanto militarmente, quanto podem ser o polo aglutinador de uma nova ordem global que não tenha os Estados Unidos na cabeça.

É sintomático que na declaração conjunta que selou a amizade ilimitada entre China e Rússia o termo Brics tenha sido mencionado pelo menos cinco vezes. As boas relações entre Rússia e China com os países da África e da América Latina é fato notório. A viagem do presidente brasileiro Jair Bolsonaro à Rússia em meio à crise da Ucrânia é sintomática. Independentemente das motivações que levaram Bolsonaro à Rússia, o fato é que os interesses econômicos e as boas relações diplomáticas que unem os dois países são poderosos e estão acima de diferenças políticas, fato, aliás, que se repete, na relação do Brasil com a China. Os efeitos da crise da Ucrânia podem, assim, ser mais profundos e duradouros do que uma observação superficial dos acontecimentos pode levar a crer.

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