Curta “Blue”- Um poema visual em azul

O curta “Blue”, do cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul e a literatura de Haruki Murakami

Filme "Blue" I Foto: Divulgação

Há muitos anos não via um filme do cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul, mas neste ano, depois que comecei a ver filmes na plataforma Mubi, tive a oportunidade de ver um longa e hoje esse curta “Blue”. Engraçado que deve fazer pelo menos uns quarenta anos que vi um filme de sua autoria, mas me lembro inclusive da forma de narrar que apresentava esse filme, que trata de um drama social em que um pai e um filho sofrem questões sérias e são também perseguidos. Entretanto, não me recordo quase nada do longa que vi há algumas semanas.

Belo esse curta. Uma obra principalmente plástica. A produção é francesa, inclusive é feita pelo francês Laurent Metivier. Mas toda a equipe técnica é tailandesa e acredito que as filmagens foram feitas num espaço na própria Tailândia. É a narrativa visual de um sonho onde uma mulher, interpretada por Jenjira Pongpas, aparece quase dormindo ou quase acordada. Existem palavras, mas em tailandês e não são naturalmente traduzidas. Há um som musical que se junta à imagem criando então a narrativa dramática.

“Blue” tanto pode compor o elenco de uma exposição num museu ou então participar de uma exposição de um longa e se fazendo como complemento. É uma obra agradável, embora só para quem goste de ver. Gozar o olhar. E é interessante que foi criado por um cineasta ligado ao dilema social. Mas um grande artista plástico.

Na verdade, “Blue” faz parte de uma série de curtas que foram produzidos por ilustres cineastas e equipe, com a produção principal da Companhia Ópera Nacional de Paris. Inclusive tem um feito na Argélia, que busca documentar mulheres cantoras do Magreb, que poderiam fazer parte de uma possível ópera argelina. Mulheres como as que existem aqui no Nordeste e com essa forma de canto temos um filme sobre elas de Augusta Ferraz. Essa série que está em exibição no Mubi é excelente e tem uns seis filmes. Todos se relacionam com a música, certamente em função da produção, mas com total abertura para a criação.

Olinda, 12. 11. 21

O Impiedoso País das Maravilhas e o Fim do Mundo

Livro “O Impiedoso País das Maravilhas e o Fim do Mundo” I Foto: Divulgação

Estou me referindo à novela do japonês Haruki Murakami que reli há pouco, precisando de bastante tempo. É uma novela longa e no e-book tem nada menos do que 1.227 páginas. Fui instigado para reler essa obra enquanto leio um longuíssimo ensaio literário sobre o próprio Murakami.

Um fato que se pode constatar lendo “O impiedoso país das maravilhas e o fim do mundo” é o quanto a dimensão dramática de uma obra literária atual se encontra longe do que acontece com as obras cinematográficas. Os filmes atuais, considerando os que foram feitos dos anos 80 do século XX até hoje, não se aproximam nem cinquenta por cento da dimensão dramática de alguns romances ou novelas. O cinema ganha na capacidade de se aproximar de muitos espectadores, mas sem levar em conta isso é uma arte ainda menor. Existem muitas cenas de enorme beleza em alguns filmes modernos, mas uma novela tem o poder de ser mais empolgante.

Minha capacidade física de leitor é bem menor hoje, mas ainda consigo me entusiasmar lendo “O impiedoso país das maravilhas e o fim do mundo”. Cheguei a ler o livro com ritmo lento cerca de quatro horas num dia.

Murakami é acusado de sofrer muita influência norte-americana e dessa forma quase descaracterizar o romance japonês. A verdade é que hoje me parece que ninguém está mais livre das fortíssimas influências desse real mundo de impiedades em que vivemos. E também de coisas maravilhosas. Murakami viveu muitos anos nos Estados Unidos e justamente no período de sua formação profissional. É um artista totalmente imbuído da importância da cultura pop. Ninguém pode esquecer que um dos maiores filósofos alemães da modernidade, Theodor Adorno, embora fosse um combatente dramático do capitalismo, em parte da sua obra tem referência à cultura norte-americana, inclusive a análise da cultura pop.

Esse livro que li é uma obra que se desenvolve na verdade em duas novelas. Uma é “O fim do mundo”, que é um país estranho e que se concretiza pelo fato de as pessoas viverem sem suas sombras e assim esquecerem a sua memória. Sem a memória e sem o coração, as pessoas se ajustam bem melhor e vivem em paz. E a outra novela, “O impiedoso país das maravilhas”, é a estória de um jovem de 35 anos de idade e sua relação com a ciência, um cientista e sua dependência das lutas terríveis do mundo dos consórcios. É uma estória moderníssima de crítica terrível e justa ao mundo do capitalismo. Acredito que muitos leitores o leiam sem achar que estão sendo marcados por uma obra política.

Na verdade, porém, existe uma unidade entre os dois tempos em que se passam as duas estórias, que são uma única e se unem no final da narrativa. O personagem principal e narrador pode parecer ao leitor como duas pessoas e sem dúvida são uma só. As garotas que dele se aproximam são apresentadas como pelo menos umas quatro, mas a junção no final mostra que tanto a menina de 17 anos, neta do professor, é também a funcionária da biblioteca que empresta livros sobre dinossauros e também a moça que o acompanha na biblioteca onde lê os sonhos e ainda mesmo a sua primeira mulher com quem esteve casado. E assim o leitor encontrará muitos momentos em que as duas narrativas se aproximam. Um fato interessante é que os quarenta capítulos da novela se desenvolvem seguidos numa contagem única, o que dimensiona melhor as junções que o autor busca e encontra.

Escritor Haruki Murakami I Foto: Reprodução

Haruki Murakami tem uma enorme capacidade técnica e sabe com verdadeira mestria construir o arcabouço de uma novela. Ele escreve para “todos os leitores”: quem gosta de ler uma novela para se distrair e ao mesmo tempo para um leitor com um espírito mais denso. Assim vai criando em quarenta capítulos as duas estórias. E tanto ocupa o leitor com a descrição de um estranho elevador, então o ambiente de um estranho subterrâneo para chegar à oficina de um cientista biólogo, ou então diverte o leitor falando sobre uma jovem de 17 anos gordinha de sua maneira de andar ou mesmo falar. É uma obra para o leitor que gosta de acompanhar as aventuras de uma novela e também para o leitor que quer conhecer o mundo moderno e suas estranhas formas de vivência.

Como já comentei, quando comecei a ler e-book tomei conhecimento desse autor Haruki Murakami, lendo logo “1q84” e assim me empolguei junto com meu neto Vitor Mendes, que também lê os livros de Murakami. Mas com essa releitura de “O impiedoso país das maravilhas e o fim do mundo”, e o ensaio sobre sua obra que ainda estou lendo vagarosamente, hoje posso dizer ser um leitor muito próximo desse grande escritor. Não simplesmente um “best-seller”.

Me apaixona a cultura japonesa, mas lendo um escritor como Haruki Murakami ficamos conhecendo muito da cultura pop e sua intensa forma de dimensão estética pop. Somos contra o capitalismo que teve nos Estados Unidos o seu campo de maior desenvolvimento, mas somos obrigados a conhecer todas as formas de cultura modernas, e para os jovens esse estranho mundo que está aí na frente e que é realmente “despiadado”, como se diz em espanhol. Eu vejo o mundo com todas as suas enormes dificuldades, mas cada dia me sinto um privilegiado em conhecer as maravilhas. Com a memória e o coração vocês verão a vitória através da dimensão estética.

Olinda, 09. 11. 21

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