Deus dos desgraçados

''Javé é guerreiro, seu nome é Javé''. Assim cantaram Moisés e os filhos de Israel ao ''Deus libertador''. Embora mesmo os judeus e cristãos mais fundamentalistas, que mais recorrem às citações literais da Bíblia, privilegiem os aspectos mais benéficos

O Deus bíblico é uma fusão dos numerosos deuses que a nação dos hebreus (termo derivado de hapîro – migrantes, nômades) encontrou em sua trajetória pelas terras do Oriente Médio. Alguns textos bíblicos foram escritos, provalmente, antes de 1000 a.C. e se calcula que os livros da Lei (de Moisés), os cinco primeiros da Bíblia, a começar pelo Gênesis, desenvolveram-se ao longo de 800 anos, conforme apurou Johan Konings, SJ, em A Bíblia nas suas origens e hoje.
Na construção dos deuses, a religião ''retira os poderes, as qualidades e as essências do homem de dentro do próprio homem e as diviniza como se fossem seres separados, não importando aqui se ela transforma cada uma em si individualmente num ser, como no politeísmo, ou se reúne todas num único ser, como no monoteísmo'', conta Ludwig Feuerbach, o pensador hegeliano que tanto influenciou Marx e Engels. Os homens atribuem aos deuses as virtudes que considera mais positivas: o amor extremado, a justiça, a retidão, a coerência, a dignidade, a magnanimidade, a tranqüilidade imperturbável, a serenidade etc. Os povos guerreiros imputam aos seus deuses (Marte, por exemplo) também os atributos necessários a um guerreiro vencedor. Os ''filhos de Israel'' guerreavam por terra, milênios atrás. Conferiam a Javé as sécias dos lutadores vitoriosos, daí a oração de Moisés e os filhos, depois de uma vitória, em Êxodo, 15, 1-18:
''Vou cantar a Javé, pois sua vitória é sublime:
ele atirou no mar carros e cavalos.
Javé é minha força e meu canto,
ele foi a minha salvação.
Ele é o meu Deus: eu o louvarei;
é o Deus de meu pai: eu o exaltarei.
Javé é guerreiro, seu nome é Javé.
Ele atirou no mar os carros e a tropa do Faraó,
afogou no mar Vermelho a elite das tropas:
as ondas os cobriram, e eles afundaram como pedras.
Tua direita, Javé, é terrível em poder,
tua direita, Javé, aniquila o inimigo;
com sublime grandeza abates teus adversários,
desencadeias tua ira, e ela os devora como palha.
Ao sopro de tuas narinas
as águas se amontoam,
e as ondas se levantam como represa;
as vagas se congelam no meio do mar.
O inimigo dizia: ‘Vou persegui-los e alcançá-los,
vou repartir os despojos e me saciar com eles;
vou tirar minha espada, e minha mão os agarrará’.
Teu vento soprou, e o mar os cobriu:
caíram como chumbo nas águas profundas.
Qual Deus é como tu, Javé?
Quem é santo como tu, ó Magnífico,
terrível em proezas, autor de maravilhas?
Estendeste a direita, e a terra os engoliu.
Guiaste com amor o povo que redimiste,
e o levaste com poder para tua morada santa.
Os povos ouviram e tremeram,
e o terror se espalhou entre os governantes filisteus,
e os chefes de Edom ficaram com medo.
O temor dominou os nobres de Moab;
os governantes de Canaã cambaleiam todos.
Sobre todos eles cai o tremor e o temor.
A grandeza de teu braço os deixou petrificados,
até que teu povo atravesse, ó Javé,
até que passe este povo que compraste.
Tu o conduzes e o plantas sobre o monte da tua herança,
no lugar em que fizeste teu trono, ó Javé,
no santuário que tuas mãos prepararam.
Javé reina sempre e eternamente''.
Esse Deus que afoga no mar a elite das tropas, que aniquila o inimigo, abate os adversários e com ira os devora, é esse Deus que inspira os sionistas, autores de ''maravilhas'' como a destruição de Beirute, o assassínio de crianças e cidadãos palestinos e árabes, utilizando para isso os mais poderosos e modernos instrumentos de morte de devastação desenvolvidos nos mais de 3 mil anos após a gênese dos textos do Pentateuco. Um Deus ''terrível em proezas'', diferente daquele a quem apela Castro Alves, indignado com as cenas do navio negreiro:
''Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro… ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!…''

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