“Devoção”: Fé e história

Sincretismo religioso no Brasil a partir da utilização de ritos de Umbanda e do Catolicismo, a partir da identificação de Santo Antônio como Ogum são tratados pelo brasileiro Sérgio Sanz em seu documentário, que traça também um perfil da escravidão no paí

Os devotos de Santo Antônio e os protegidos de Ogun ao assistir  a “Devoção”, do brasileiro Sérgio Sanz,  terão a oportunidade de se defrontar com aspectos desconhecidos de ambos, durante as intervenções de babalorixás, de religiosos e de professores universitários, estudiosos de umbanda e do catolicismo, de que se trata, na verdade, de divindades formadoras da identidade nacional. Diversas nuances desta formação, iniciada quando os primeiros escravos chegaram ao Brasil, por volta de 1548, são reforçadas ao longo do filme, através de depoimentos que buscam esclarecer a fusão de religiões de matriz africana com o catolicismo, imposto pelo Vaticano e o colonialismo português. E como os africanos, embarcados na costa africana, eram batizados, não só porque eram considerados pagãos, mas porque precisavam adotar, desde já, a cultura do colonizador. Os escravos, no entanto, não se submetiam a esta imposição, se desdobravam para não perder suas raízes culturais e crenças religiosas.



                        



Esta mescla de história do Brasil, do tráfico negreiro e do sincretismo religioso dão o tom deste importante documentário, que busca discutir a religião do ponto de vista da devoção, da crença popular em seus santos e orixás, e também do traço sociológico. Em seus depoimentos as/os babalorixás não se restringem a reforçar o papel dos orixás, remontam suas origens, permitindo ao espectador menos ligado às questões religiosas, principalmente às religiões de matriz africana, entender suas mutações históricas. A babalorixá franco-brasileira traça um perfil contundente de Ogun, como um cruel e temível orixá, disposto a punir a quem o desobedece. Ele “é deus ferreiro, senhor também da guerra, dono das estradas, em estreita relação com Exu”(!).Uma visão atenuada pelo padre franciscano que o revela como um santo popular, o mais popular da Igreja Católica: Santo Antônio.


 


                        


Ogum é o patrono das artes manuais
 
                       


De perfil guerreiro, capaz de se levantar para combater o que lhe parece condenável, ele “e o patrono das artes manuais, um inventor das indústrias, um herói cultural. Empunha uma espada e dança como se duelasse, altivo e um tanto bravio”(2).  Têm-se, desta forma, uma imagem adversa do que sempre se tem deste santo a que recorrem moças e moços em busca de seu par. É, em suma, o “santo casamenteiro”. Mesmo na literatura umbandista seus traços católicos são reforçados: ”(…) Ogum, na Umbanda, abre ao postulante em busca da Divindade sua mente  para a ação resoluta de mil combates, na atitude correta, até a vitória final. Como um cavaleiro medieval, Ogum assim se apresenta aos fiéis concitando-os à conquista dos altos valores morais (…)3”.
                       


Emergem daí também a gênese da fusão de crenças católicas e orixás, santos e sincretismo, em cuja raiz está o colonialismo português. Os escravos, uma vez no Brasil, eram obrigados a se desfazer de quaisquer traços religiosos africanos. Inclusive adotar modos, nomes e ritos católicos. A maioria os cumpria, adaptando-os a seus ritos e preceitos religiosos. Uma forma de rejeitar e, ao mesmo tempo, reforçar sua crença para sobreviver à violência do senhor de escravos e do império português. A professora Mariza Soares, da UFRJ, explica que eles, os escravos, souberam usar esta dualidade para reforçar sua identidade cultural. E a preservaram para as gerações futuras, que hoje podem transitar entre o terreiro e a igreja católica, sem perder sua crença. Ela se torna, assim, dual, ou seja, sincrética. Pega aspectos de uma e outra e os funde sem que percam suas principais características. Muitos orixás, dentre eles Ogun, a quem o filme se detém, terminam por ganhar traços católicos, fundindo-se com os de Santo Antônio.    


                    


Validade do filme é por discutir identidade nacional


                    


Sanz usa esta dualidade nas entrevistas que faz com frades e babalorixás. Mostra casamentos e rezas na igreja católica e o ritual de matriz-africana no terreiro de umbanda. Neles há todo um paramento, marcações, crenças, recompensas, graças muito presentes nas falas dos devotos de Santo Antônio – da mulher cujo filho melhora de vida ao jovem cuja mãe foi curada do câncer. Estes quando revelam sua fé não a remetem ao orixá, mas a Santo Antônio, na conversão católica, distante de sua matriz-africana, embora oreserve a origem desta. A tranqüilidade com que babalorixás, padres e professores tratam deste sincretismo trás para o espectador a certeza de que a sociedade brasileira o aceita. Sanz não se detém nesta contradição. Nem entra na polêmica da dualidade religiosa existente no país, de o brasileiro ir à igreja católica e, ao mesmo tempo, freqüentar o terreiro de candomblé. Restringe a discussão à identidade Ogum/Santo Antônio.
                    


No entanto, se a validade de “Devoção” está em discutir a formação da identidade brasileira, o sincretismo por ele apresentado sofre ameaças de retrocesso. A Igreja Católica, aliada do Império Português, contribuiu de 1548 a 1888 com o sistema escravagista, justificando-o das mais diversas formas. De ele ser justo, o africano ser pagão, não ter alma, ser necessário à economia portuguesa, dentre outras barbaridades, até sua negação como ser humano. Hoje, Igrejas Pentecostais absorvem parte de seus ritos, enquanto as satanizam. Usam, por exemplo, “o descarrego”, como rito protestante, quando, na verdade, trata-se de apropriação do que integra as religiões de matriz-africana. Toda a identidade afro-descendente é identificada com algo ruim, influência que deve ser banida. Um tipo de malefício que vem sendo combatido pelas entidades que congregam terreiros, centros e organizações de matriz–africana.


                             


Satanizar ritos africanos é voltar ao tempo da escravidão
                              
                 


Ainda que “Devoção” não trate desta questão assisti-lo reforça a necessidade de maior discussão da defesa das religiões da matriz-africana. Tanto  como preservação da liberdade de culto para vasto segmento dos afro-descendentes, maioria no país,  quanto para  ampliação da identidade cultural nacional. Identificá-las como manifestação satânica, sem traço religioso, é voltar à época da escravidão, retirando de milhões de brasileiros o direito de buscar nos orixás o amparo para suas aflições e certezas enquanto ser humano. Mãe Meninazinha de Ôxún explica com toda simplicidade que ao cuidar de um templo religioso, ela o faz em nome de todos e não só dela. Remonta à raiz da religião de matriz-africana, que trata do coletivo e não do individual. Não há, em sua fala, conflito entre deter o saber e excluir quem não o detém.  Contraria, em muito, a fúria dos novos pentecostais.
                  


“Devoção” enquanto documentário segue a linha atual de levantar questões presentes no imaginário popular. O faz pela via puramente histórica, dando voz aos fiéis enquanto católicos sem o fazer com os adeptos do canbomblé ou da umbanda. Eles são apenas vistos. Às vezes, como no início do filme num ritual no meio do mato, noutras destituídos de suas oferendas. A babalorixá franco-brasileira se refere às diferenças do que é usado nas oferendas na África, onde se sacrifica cães, e no Brasil, onde os bodes são sacrificados. Ela o justifica dizendo que aqui não se penaliza cães, porque os brasileiros lhe dedicam muito afeto. São abordagens como estas que, em detalhes, põem todo o imaginário em ação, procurando ver nestes ritos mais que significação histórico-religiosa. Muitos brasileiros deveriam assistir “Devoção” para compreender suas ações, dentre elas a freqüência com que procuram terreiros e lojas especializadas em imagens, incensos, velas, ervas e, notadamente, conforto para suas angústias, perdas e, por que não, o alcance de seus objetivos.


 


Site oficial:


http://www.devocao.com.br/



“Devoção”. Brasil. 2007. 85 minutos. Direção/Roteiro: Sérgio Sanz.


(1) Magalhães, Elyette Guimarães de, Ogum, Orixás da Bahia, 5ª edição, 1977, pág. 58;


(2) Idem, Idem, pág. 58;


(3) Cisneiros, Israel, Omulubá, Ogum,  Fundamentos de Umbanda * Revelação Religiosa, Equipe Editores, págs.67/68.

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