Diálogo atravessado
Dei sorte, imaginei. Fazia tempo que não viajava sozinho numa fileira de três assentos.
Publicado 01/08/2018 14:02
No assento ao lado, acomodei o iPad, pus o celular para recarregar e deixei o da janela livre. E segui lendo ‘Biografia da nação’, de José Carlos Ruy.
Uns quarenta minutos de voo transcorridos, tive que acolher a contragosto um companheiro de viagem, que me pediu licença e ocupou o assento F, à janela. Talvez da idade do meu neto Miguel, 12 anos, simpático mas excessivamente falante.
(É da índole do pré-adolescente interromper a leitura da gente durante uma viagem e introduzir a sua "pauta" sem pedir licença. Já me aconteceu algumas vezes…)
Deu-se então um diálogo atravessado por pausas prolongadas com o inquieto passageiro.
— Por que o senhor risca o livro?
— Não "risco", sublinho algumas passagens que considero importantes e faço anotações na página.
— Tem pouca coisa importante nesse livro?
— Tem muita, o livro todo é importante.
— Mas tem página que o senhor "risca" e outras o senhor não "risca" nem anota…
— Mas as partes que anoto ajudam a pensar no todo que li.
— E por que o senhor para de ler e escreve aí (apontando para o iPad)?
— Porque preciso resumir umas partes e escrever sobre elas depois.
— O senhor é escritor?
— Não. Tenho dois livros publicados, mas não me considero escritor.
— Eu pensava que quem escreve livros é escritor.
— Não é bem assim. Escritor vive de escrever, eu escrevo muito mas trabalho em outras coisas.
— O senhor estudou pra trabalhar em quê?
— Sou médico, mas não trabalho como médico. Ajudo no governo da minha cidade, sou vice-prefeito do Recife.
— Prefeito não pode ser médico?
(A essa altura somos avisados de que se iniciam os procedimentos para pouso no Aeroporto dos Guararapes e uma voz feminina o convoca: "meu filho, volte para o seu lugar").
— Dá licença? Olhe, acho o senhor muito estranho, viu?
— Estranho?
— Não entendi nada. O senhor escreve e diz que não é escritor, fala que é médico mas não trabalha como médico…
— Tá bem, amigo. Se a gente se encontrar novamente eu tentarei explicar. Foi um prazer te conhecer. Meu nome é Luciano.
— Eu sou Genivai. Tchau!