Diálogo atravessado

Dei sorte, imaginei. Fazia tempo que não viajava sozinho numa fileira de três assentos.

No assento ao lado, acomodei o iPad, pus o celular para recarregar e deixei o da janela livre. E segui lendo ‘Biografia da nação’, de José Carlos Ruy.

Uns quarenta minutos de voo transcorridos, tive que acolher a contragosto um companheiro de viagem, que me pediu licença e ocupou o assento F, à janela. Talvez da idade do meu neto Miguel, 12 anos, simpático mas excessivamente falante.

(É da índole do pré-adolescente interromper a leitura da gente durante uma viagem e introduzir a sua "pauta" sem pedir licença. Já me aconteceu algumas vezes…)

Deu-se então um diálogo atravessado por pausas prolongadas com o inquieto passageiro.

— Por que o senhor risca o livro?

— Não "risco", sublinho algumas passagens que considero importantes e faço anotações na página.

— Tem pouca coisa importante nesse livro?

— Tem muita, o livro todo é importante.

— Mas tem página que o senhor "risca" e outras o senhor não "risca" nem anota…

— Mas as partes que anoto ajudam a pensar no todo que li.

— E por que o senhor para de ler e escreve aí (apontando para o iPad)?

— Porque preciso resumir umas partes e escrever sobre elas depois.

— O senhor é escritor?

— Não. Tenho dois livros publicados, mas não me considero escritor.

— Eu pensava que quem escreve livros é escritor.

— Não é bem assim. Escritor vive de escrever, eu escrevo muito mas trabalho em outras coisas.

— O senhor estudou pra trabalhar em quê?

— Sou médico, mas não trabalho como médico. Ajudo no governo da minha cidade, sou vice-prefeito do Recife.

— Prefeito não pode ser médico?

(A essa altura somos avisados de que se iniciam os procedimentos para pouso no Aeroporto dos Guararapes e uma voz feminina o convoca: "meu filho, volte para o seu lugar").

— Dá licença? Olhe, acho o senhor muito estranho, viu?

— Estranho?

— Não entendi nada. O senhor escreve e diz que não é escritor, fala que é médico mas não trabalha como médico…

— Tá bem, amigo. Se a gente se encontrar novamente eu tentarei explicar. Foi um prazer te conhecer. Meu nome é Luciano.

— Eu sou Genivai. Tchau!

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