“Diário de Uma Camareira”, cães dos ricos não são pobres

As conflituosas relações entre empregada e patroa no início do século 20 na França são o tema deste filme do cineasta francês Bénoit Jacquot

“Os cães dos ricos não são pobres” não é uma frase solta. Dita pela camareira Célestine (Léa Seydoux) ao jardineiro Joseph (Vincent Lindon), num instante de rancor, sintetiza as conflituosas relações com sua patroa na França do início do século 20, neste “Diário de Uma Camareira”. Os cães de raça, comendo filé-mignon, não são submetidos a humilhações e extenuantes jornadas de trabalho, nem acomodados no sótão da mansão, conduzida com mão-de-ferro por madame Lanlaire (Clotilde Mollet).

Para dar conta de seu tema, o cineasta francês Bénoit Jacquot (Adeus Milha Rainha, 2012) e sua corroteirista Héléne Zimmer centram sua narrativa no embate entre elas. O senso profissional de Célestine não inclui a subserviência, só as exigências ditadas pelas tarefas. Diferente de Madame que, entregue ao crochê e à ociosidade, mescla suas “urgências” pueris a puro sadismo. E nunca se contenta com o que é feito pela criada.

Numa sequência, ela faz Célestine subir a escada três vezes para atendera a seus caprichos. Extenuada, a jovem desabafa baixinho: ”Devia servi-lhe arsênico”. Madame preza mais seus cães, o abajur inglês e o tapete chinês que o ser humano. São reflexos do agonizante sistema feudal no interior da França na época, tratados pelo francês Octave Mirbeau em seu romance homônimo. Na pequena Priory, o senhor Mentuil Lanlaire vive às turras com seu vizinho, o Capitão reformado, por mútuas desconfianças.

Célestine defende seus interesses

Eles são o contraponto usado por Jacquot para tecer a imagem de Célestine, como mulher consciente de seus interesses. Mentuil e o Capitão são tratados por ela com desprezo, enquanto as madames são vistas como armadilhas. Numa sequência, ela se sente ofendida pela cortesã que lhe oferece facilidades em seu bordel, indo às lágrimas, noutra ao invés de responder às perguntas da madame que lhe oferece emprego, a entrevista para saber se não seria explorada ao extremo e recusa a oferta.

Em bem estruturados flashbacks, Jacquot constrói uma Célestine feminista cujo passado inclui o trabalho em mansões no interior e em Paris. E a paixão pelo jovem Georges, neto de sua idosa patroa, com desastrosas consequências. Daí seu constante ar de profunda melancolia e a aversão por forçadas intimidades dos patrões.

Ao centrar a narrativa em Célestine, Jacquot compara os primórdios da luta da mulher por sua emancipação com os de agora, quando grandes passos foram dados. Ela constrói sua independência de forma individual, como reação à exploração e maus tratos, mas não tem consciência de que ela só vira de forma coletiva. O mais próximo disso é sua participação no grupo de mulheres do qual participa Rose, camareira do Capitão. Ali, porém, as críticas ao assédio de Mentuil não as levam ao confronto.

Joseph é saída para Célestine

A forma de Jacquot resolver esta questão é uni-la ao misterioso Joseph. Eles frequentam juntos a cozinha, se vêm no jardim, mas não se falam. Aos poucos, ela descobre o envolvimento dele com a organização antissemita, que prega a execução de judeus, numa antevisão do nazismo na França, com a República de Vichy (1940/1944), quando Hitler dominou totalmente o país. Nasce daí certa atração, mais por interesse em escapar à opressão do que à paixão em si.

Se antes a luta de classes ditava os confrontos, a partir daí eles se empenham em se vingar dos Lanlaire. A sequência em que levam tudo o que Madame mais prezava se torna o êxtase de Célestine. Inclusive a forma como se despede dela em frangalhos, convidando-a para ficar, atesta sua capacidade de gélida vingança.

Contribui para este clima, a primorosa fotografia de Romain Winding, a iluminação de cena via candelabros, num contraste claro/escuro, em tons amarelados, quentes, sistema usado por Stanley Kubrick (1928/1999), em ”Barry Lindon”(1975). Jacquot traz sua narrativa para a modernidade ao ressaltar as atitudes independentes de Célestine, como suas andanças pelo lugarejo, participação no grupo de camareiras e recusas aos assédios dos senhores.

Versão de Buñuel é diferente

Isto mostra o esmero de Jacquot em construir a cena, o enquadramento, a interpretação, permitindo à imagem, à estética, traduzir suas intenções. No entanto, não evita que sua adaptação seja totalmente diferente da feita por Luís Buñuel e seu parceiro Jean-Claude Carrière, em 1964. Como nenhuma transposição é literal, quem assiste a uma versão estranha a outra. A de Buñuel é em p&b e mais fiel a Mirbeau. A de Jacquot toma muitas liberdades dramatúrgicas.

Corta vários personagens, como o idoso Rebour Lanlaire, a faxineira da família e a garota Claire, estuprada no matagal. E cria várias situações, iguais ao casamento de Célestine com Joseph, não com o Capitão, e inclui o abuso sexual sofrido por Marianne. Mas se Buñuel mostra o germe do nazismo na França e a perseguição aos imigrantes nos anos 30, ele lhes reserva apenas algumas sequências, que não elucidam o comprometimento de Joseph. Enfim, Jacquot só se inspirou em Mirbeau.


Diário de Uma Camareira. (“Journal d´une femme de chambre”). Música: Bruno Coula. Montagem: Júlia Gregory. Fotografia: Romain Winding. Roteiro: Héléne Zimmer/ Bénoit Jacquot. Direção: Bénoit Jacquot. Elenco: Léa Seydoux. Vicent Lindon, Clotilde Mollet. Hervé Pierre.

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